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MASSAUD MOISÉS - "TODO LIVRO TEM SUA HISTÓRIA" / MARIA MORTATTI

Massaud Moisés (09.04.1928-11.04.2018), nascido na capital paulista, foi professor de literatura brasileira em colégios e faculdades paulistanas, até seu ingresso, em 1963, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP – Universidade de São Paulo, como assistente da Cadeira de Literatura Portuguesa, então ocupada pelo professor Antonio Soares Amora, que sucedera Fidelino de Figueiredo, professor português que introduziu os estudos de literatura portuguesa nas universidades brasileiras. Em 1954, Massaud Moisés assumiu essa Cadeira e exerceu outras atividades na USP até se aposentar em 1995. No início dos anos 1960, por designação do Governador Carvalho Pinto em seu projeto de expansão do ensino superior paulista, exerceu a função de diretor da Faculdade de Filosofia de Marília e da Faculdade de Filosofia de Assis, ambas incorporadas à Unesp – Universidade Estadual Paulista, criada em 1976. Foi, ainda, professor visitante em universidades estadunidenses e esteve em visita de estudos na Universidade de Santiago de Compostela, Espanha, dirigiu o Centro de Estudos Portugueses da Universidade de São Paulo, ministrou conferências em universidades brasileiras, norte-americanas e europeias. Recebeu do governo português o título de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique e, no ano 2000, assumiu a cadeira de número 17 na Academia Paulista de Letras.

Durante meio século, entre final dos anos 1950 e os anos 2000, escreveu e publicou livros – alguns com dezenas de reedições ou edições revistas e aumentadas – sobre literatura portuguesa e brasileira, crítica e análise literárias, que se tornaram referências para estudiosos, professores e estudantes. Entre eles, estão: Fernando Pessoa: o espelho e a esfingeA literatura portuguesaA literatura portuguesa através dos textosO conto portuguêsPequeno dicionário de literatura portuguesa - Crítico, biográfico e bibliográficoPequeno dicionário de literatura brasileira (com José Paulo Paes); História da literatura brasileira (5 vols.); A criação literária. PoesiaA Criação Literária. Prosa (2 vols.); Dicionário de termos literários. Dirigiu também a Colecção de Textos Básicos de Cultura, da Cultrix. 

Sua obra me foi apresentada no início dos anos 1970 pelos professores Jorge Cury, de Literatura Portuguesa, e Dante Tringali, de Teoria Literária, no curso de Letras da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, na época instituto isolado de ensino superior, posteriormente também incorporado à Unesp. Com admiração pelo contemporâneo e colega, esses dois professores indicavam e recomendavam a obra de Massaud Moisés como fonte de consulta para nossos estudos universitários e para nossa futura atuação profissional como professores de língua portuguesa e literaturas brasileira e portuguesa no então ensino de 1º. e 2º. graus. Quando perguntávamos sobre a pronúncia correta do nome do autor, Cury respondia em seu característico tom brincalhão: “Alguns dizem ‘Massô’, mas está errado. Ele não é francês, é filho de libanês. A pronúncia correta é ‘Massaúde’. 

Segui as recomendações. Os livros de Massaud Moisés estavam entre os que emprestei da biblioteca da faculdade ou comprei na livraria da cidade, para estudar durante o curso e depois para o concurso de ingresso no magistério público. Na prova de redação, cujo tema era uma comparação entre O Cortiço, de Aluísio Azevedo, e O crime do Padre Amaro, de Eça de Queiroz, fiz uma quase paráfrase da análise que lembrava ter lido em A criação literária (Melhoramentos; Edusp, 7ª. ed.,1975). Outros, como Guia prático de análise literária (Cultrix,1974) e Dicionário de termos literários (Cultrix, 1982), também passaram a fazer parte da minha biblioteca. Nas páginas amareladas estão as marcas do intenso manuseio e anotações para preparação de aulas, análises literárias e pesquisas sobre termos, autores e obras. As lembranças desses livros, recuperei-as para registrar neste texto, quando, dias atrás, ao pegar do chão a capa despregada de A criação literária e devolvê-la ao exemplar na estante, abri-o e encontrei sublinhada a primeira frase do prefácio do autor: “Todo livro tem sua história”. Dei-me conta, então, de que, embora não tenha conhecido Massaud Moisés pessoalmente, meio século se passou desde o início de minha história de leitora de sua obra, quando eu era ainda estudante de Letras em Araraquara, e há mais de 30 anos ingressei como docente e pesquisadora na universidade e na faculdade de que ele foi diretor, contribuindo para a expansão do ensino superior no estado de São Paulo e, de modo duradouro, para a formação de milhares de estudantes, professores e pesquisadores.

Maria Mortatti - 17.04.2025

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POETAS BISSEXTOS – “ESTADO DE GRAÇA DE RARO EM RARO” / MARIA MORTATTI

“Bissexto” (do latim bis sextum) é a denominação do ano civil com um dia extra, 29 de fevereiro, acrescentado de quatro em quatro anos ao calendário gregoriano. Foi a solução matemática criada no século 45 a.C. pelo astrônomo Sosígenes para compensar as 6 horas que sobram a cada ano de 365 dias, 5 horas, 48 minutos e 46 segundos, tempo exato do movimento de translação da Terra em torno do Sol. 

Em 1942, a palavra foi trasladada pelo poeta Vinícius de Moraes (19.10.1913 – 09.07.1980) em artigo sobre poesia brasileira, na revista argentina Sur, de 1942, para se referir em sentido figurado aos poetas “que nós, seus íntimos, chamamos cordialmente de bissextos – poetas sem livros de versos – bissextos pela escassez de sua produção, cuja excelência sem embargo os coloca ao lado dos mais citados”. 

Com base nessa translação semântica, o poeta Manuel Bandeira (09.04.1886-13.10.1968) imortalizou a expressão “poetas bissextos” em sua Antologia de poetas brasileiros bissextos contemporâneos (Zélio Valverde, 1946). Assim explica no prefácio: 


Não procurem a expressão nos dicionários, porque não a encontram. Pelo dicionário, bissexto só há ano, e é o que tem um dia a mais, o que ocorre de quatro em quatro anos. Poeta bissexto deve, pois, chamar-se aquele em cuja vida o poema acontece como o dia 29 de fevereiro no ano civil [...] bissexto é todo o poeta que só entra em estado de graça de raro em raro.”  Mas: “nego que a circunstância de não publicar os poemas em livro ou em revistas e jornais seja característica essencial do bissexto. O essencial é a produção rara.”; “O bissexto, na sua relativa impotência criadora, tem, às vezes, achados que enchem de inveja todo o ‘genus irritabile’. 

O organizador reuniu mais de uma centena de poemas escritos por pessoas que na época exerciam diferentes atividades – escritores, advogados, engenheiros, médicos, sociólogos, professores, jornalistas, padres, pintores. Entre eles estavam: Afonso Arinos de Mello Franco, Aníbal Machado, Dante Milano, Euclides da Cunha, Joaquim Cardozo, José Auto, Gilberto Freyre, João Cabral de Melo Neto, Ismael Nery, Joanita Blank, Leopoldo Brígido, Lucila Godoi, Lucilo Bueno, Luís Aranha, Maria Clara Machado, Maria Helena, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Pedro Dantas, Pedro Nava, Raimundo Magalhães Júnior, Rodrigo M. F. de Andrade, Rubem Braga, Sérgio Buarque de Hollanda.

Nem todos eram “bissextos autênticos”, como o organizador adverte, mas optou por incluí-los para não perder poemas de qualidade. Nem todos eram ou se tornaram contumazes – epíteto sugerido por Paulo Dantas e aceito por Bandeira, como antônimo de bissextos. Vinte e quatro anos depois, na 2ª. edição da Antologia... (Organização Simões, 1964), Bandeira incluiu outros poetas que, nas décadas seguintes, passaram a publicar de modo contumaz, como H. Dobal e Odylo Costa, filho. Provavelmente pelo mesmo motivo, outros, como Joaquim Cardozo e Paulo Mendes Campos, foram excluídos dessa edição. Alguns, ainda, tornaram-se “imortais” quando posteriormente eleitos, pelo conjunto da obra em outros campos e gêneros literários, como membros da Academia Brasileira Letras. 

Manuel Bandeira – poeta contumaz – tornou-se "imortal" em 1940. A Antologia de poetas bissextos contemporâneos, publicada naquele ano, tornou-se um clássico – teve outras reedições, inspirou outras antologias e provavelmente outros poetas contumazes, ou não. E sua solução poética para designar aquele "em cuja vida o poema acontece como o dia 29 de fevereiro no ano civil" foi consolidada em dicionário: “quem exerce pouco determinada atividade (ex.: poeta bissexto)”. 

Maria Mortatti –19.03.2025


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CENA BRASILEIRA NA FOTOPTICA-BRASILIENSE / MARIA MORTATTI

A revista Novidades Fotoptica lançada em 1953 e publicada até 1987, com alterações na periodicidade, formato e conteúdo, foi uma das iniciativas de Thomaz Farkas (17.10.1924-25.03.2011), fotógrafo, cineasta e empresário de origem húngara radicado na cidade de São Paulo. Reconhecido como um dos pioneiros da moderna fotografia e do filme documentário no Brasil, ao lado de grandes cineastas do Foto Cine Clube Bandeirantes, Farkas assumiu, após a morte do pai em 1960, a direção da Fotoptica, primeira empresa especializada em equipamentos fotográficos no País. Com formato de jornal, Novidades Fotoptica publicava anúncios de produtos do ramo, divulgação de livros e concursos, artigos sobre técnica fotográfica e audiovisual, exposições, entre outros. A partir de 1970, com formato de revista, passou a publicar também textos críticos e ensaios  fotográficos.

Não menos importante na cena cultural e literária brasileira foi a Editora Brasiliense, fundada em 1943 na cidade de São Paulo, por reconhecidos intelectuais e escritores brasileiros: Caio Prado Júnior, José Bento Monteiro Lobato, Arthur Neves, Leandro Dupré a Maria José Dupré, cuja casa foi utilizada como primeira sede da editora. A Brasiliense publicou obras fundamentais da literatura e cultura brasileira e internacional, caracterizando-se pelo prestígio de seus autores e como foco de resistência ao Estado Novo e à ditadura militar pós-1964. A partir de 1975, sob a direção de Caio Graco Prado (1931-1992), filho de Caio Prado Júnior, foram lançadas coleções inéditas, como a Primeiros Passos, que tiveram sucesso editorial duradouro, com vendas de milhares de exemplares nos anos 1980. A editora também lançou a Revista Brasiliense, com circulação entre 1955 e 1964, e Leia livros, dirigida por Caio Graco Prado e Cláudio Abramo, com circulação entre 1978 e 1984. A Livraria Brasiliense, na Rua Itapetininga, no centro da cidade de São Paulo, tornou-se referência para encontros de intelectuais, escritores, manifestações, debates e exposições.

No final do ano de 1979, Fotoptica e Editora Brasiliense, reunindo expertises, promoveram o Concurso Cena Brasileira, com ensaios de textos e fotos. Os selecionados foram publicados na revista Novidades Fotoptica, n. 83, de 1978. No editorial consta comentário sobre os ensaios, que revelam a visão de uma parcela significativa da população, na moderna cena fotográfica e literária e cultural e no contexto político da época: “Não importa onde esteja a cena brasileira [...] o que interessa é que muitos jovens brasileiros querem encontrar os vestígios de uma realidade sem os retoques do estúdio”. Como “nos tempos do movimento universitário, a fotografia documento sem ranço de qualquer academicismo sociologismo ou antropologia [...] A unidade de palavra e de imagem muito pouco estimulada na maior parte de nossas situações ganha em vigor e expressão.”

Além da publicação na revista Novidades Fotoptica, os premiados no concurso tiveram a oportunidade de expor suas fotos e poemas em varais estendidos na calçada em frente à Livraria Brasiliense. Lá estava meu poema “Rapsódia brasileira: queimação da cana” acompanhando cinco fotos de Karlos Magnani. Aquela cena da estreia pública da jovem poeta numa paulistana manhã de sábado ficou documentada nas páginas da revista, guardada no acervo pessoal e preservada na memória desta brasileira. 

Maria Mortatti – 16.03.2025

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“LE CARNET DES NUITS”: AUTORRETRATO DE MARIE LAURENCIN COMO POETA / MARIA MORTATTI

Marie Laurencin (Paris, 31.10.1883 – 08.06.1956) ficou mais conhecida como “musa de Apollinaire”, poeta com quem manteve turbulento relacionamento amoroso por seis anos, e “la fauvette”, dada sua proximidade com círculos parisienses de artistas da vanguarda da arte moderna do início do século XX. Mas foi em prosa e verso que a conheci, quando ganhei de presente a edição francesa de 2022 de seu livro Le carnet des nuits (Diário das noites). Ao folhear o exemplar, saltou-me aos olhos o prenúncio da autora em um dos textos, instigando-me a adentrar na história dessa mulher, por meio de biografias e estudos recentes sobre sua obra, e conhecer as aventuras do talento da pintora, gravurista, ilustradora, cenógrafa, que registrou em verso e prosa, não apenas um autorretrato, mas também um testemunho de seu tempo.   

Le carnet des nuits foi publicado na Bélgica, em 1942, durante a ocupação nazista na França. Em 1956, ano da morte de Laurencin, foi publicada em Genebra a segunda edição. Em 2022, foi publicada na França, pela editora La Coopérative, “edição completa com notas e posfácios dos editores”. O livro é ilustrado com três gravuras e 37 textos curtos, 12 em prosa e 25 em verso, em estilo “surrealista” – conforme alguns críticos. É acompanhado de um anexo, com três poemas de Louise Lalanne, pseudônimo de Apollinaire, publicados na revista francesa Les Magres, em 1909. Dois desses poemas são de autoria de Laurencin, que os cedeu ao poeta para que ele os publicasse com seu pseudônimo. O livro é composto de poemas, diários íntimos e lembranças. Além de evocar e testemunhar o período em que ela participou da vanguarda modernista francesa, “traça a evolução interior dessa mulher extraordinária desde a infância, com uma fantasia e lucidez que provocam a imaginação [...] e  completam e enriquecem o conhecimento de sua obra pictórica: pode-se defini-lo como um autorretrato  da artista como poeta”. 

Sem vocação para o magistério, como desejava sua mãe, Laurencin trocou as aulas do Liceu Lamartine por aula em ateliê de pintura em porcelana e depois na Academia Humbert, onde conheceu, entre outros artistas, o pintor Georges Braque, fundador do cubismo, que a apresentou ao pintor Pablo Picasso. Por meio deles, em 1907 conheceu o poeta Guillaume Apollinaire (26.08.1880 – 09.11.1918), que a ela dedicou poemas como “Marie”, “Crépuscule”, “Le pont Mirabeau” e “Zone”, em seu livro Alcools (1913). Embora não tenha se filiado ao fauvismo e ao cubismo, principais movimentos artísticos de vanguarda modernista da época, mantendo estilo estético singular na representação da identidade feminina, com formas suaves e curvilíneas, Laurencin participou de círculos parisienses ao lado de artistas e escritores famosos, como Max Jacobs, André Derain, Henri Matisse. Após se separar de Apollinaire, ela se casou com o pintor alemão Otto von Wätjen, exilaram-se na Espanha durante a Primeira Guerra Mundial, retornaram a Paris, divorciaram-se. Laurencin conheceu outros artistas e escritores, teve relacionamentos amorosos com homens e mulheres, participou de círculos neoclássicos lésbicos, ilustrou 80 livros – entre os quais de André Gide, Lewis Carrol, Somerset Maugham –, produziu cenários e figurinos para o balé russo Les Biches, com música de Francis Poulenc e coreografia de Bronislava Nijinska, e para a Comédie Française, pintou retratos de personalidades parisienses, como Coco Chanel. Durante a Segunda Guerra Mundial, teve o apartamento confiscado pelos nazistas, recolheu-se em apartamento mais modesto, sua saúde se fragilizou. Morreu de parada cardíaca, em 1956, com 72 anos de idade, deixando uma biblioteca de 5000 itens. Em seu testamento, pediu que fossem colocadas em sua mão uma rosa branca e uma carta de amor de Apollinaire. 

Apesar do reconhecimento da crítica e do público nas décadas de 1920 e 1930, sua obra ficou relativamente esquecida na França e na história canônica da arte. Mais recentemente, vem despertando novo interesse de críticos, estudiosos e historiadores da arte, conquistando novos admiradores e crescente notoriedade póstuma. Em 1974, o poeta anarquista francês Léo Ferré musicou o poema “Marie”, de Apollinaire. Em 1975, o cantor francês Joe Dassin a mencionou na canção L'été indien. Em 1979, coleção de suas obras foi comprada em leilão pelo empresário japonês Masahiro Takano e expostas no Museu Marie Laurencin de Tokio – que encerrou atividades em 2019. No Brasil, seu quadro Guitarrista e duas figuras femininas (1934) integrou o primeiro lote de quadros quando da inauguração, em 1947, do Museu de Arte de São Paulo. Suas obras constaram também de exposições coletivas de artistas estrangeiros em galerias brasileiras, nos anos 1973, 1995 e 2002. 

Nas últimas décadas, a artista vem sendo “redescoberta” também em estudos acadêmicos e catálogos de exposições, que possibilitam ampliar a compreensão de seu lugar na história das artes plásticas e da literatura de autoria feminina. Em 2011, foi lançada sua biografia em inglês, escrita por Bertrand Meyer-Stabley; em 2013, sua obra foi exposta no Musée Marmottan Monet, em Paris, entre outros exemplos. Também vem sendo conhecida e divulgada sua produção como escritora em prosa e verso: correspondência inédita, prefácio, textos em revistas e Le carnet des nuits, pelo qual a conheci. Quase 70 anos após a morte, sua obra continua ecoando, provocando reflexões e contribuindo para a compreensão do lugar, muitas vezes esquecido, das mulheres na história da arte e da literatura e para lembrar que “... ter talento é uma aventura que vale a pena...”. (Marie Laurencin)

Maria Mortatti – 08.03.2025

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Obs.: As informações sobre vida e obra de Marie Laurencin sintetizadas neste texto foram extraídas do posfácio da edição francesa de 2022 de Le carnet des nuits, da Wikipedia, de artigos e de catálogos de galerias e exposições disponíveis on-line, principalmente Casa Museu Eva Klabin e Pallant House Gallery.  Os trechos do livro citados em português foram traduzidos por mim.  

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O “TOUR” DA FRANÇA POR AUGUSTINE FOUILLÉ / MARIA MORTATTI

A escritora francesa Augustine Fouillé (31.07.1833 – 08.07.1923), de pseudônimo G. Bruno (inspirado no nome do filósofo italiano) é autora de quatro manuais de leitura escolar: Francinet (1889), Les Enfants de Marcel (1887), Le tour de la France par deux enfants (1887), Le Tour de l’Europe pendant la guerre (1916). Le tour de la France..., o mais conhecido, foi utilizado para ensino de leitura, escrita, história, geografia e moral na escola primária francesa. Teve sucesso imediato e sucessivas edições com atualizações e adaptações ao sistema educacional francês. Marcou o ensino primário no contexto da Terceira República Francesa (1870-1940), foi adotado até ao anos 1950 e ainda é editado. 

Nesse manual, a narrativa em forma romanceada, organizada em 121 capítulos e ilustrada com 200 gravuras, desenvolve-se em torno das aventuras vividas pelos protagonistas, André (14 anos) e Alfred (7 anos), jovens irmãos e órfãos que partem da região da Alsácia-Lorena ocupada pelos alemães depois da Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), para encontrar o tio em Marseille, cumprindo o pedido do pai antes de morrer. Durante a viagem pelas províncias francesas, aprendem a importância da educação, do trabalho, dos saberes práticos, da diversidade cultural e linguística, dos símbolos patrióticos, das formas de vida e atividades desenvolvidas no país, reconhecendo-o como nação e pátria. Por meio das lições do manual, inculcavam-se o sentimento de unidade nacional, a moral laica – em substituição à moral religiosa das edições do século XIX – o lema republicano “liberdade, igualdade e fraternidade” e noções “controversas”, tais como a que, entre as raças humanas, a branca apresentada é a mais perfeita em relação às outras.

“Este verdadeiro ‘livrinho vermelho da República’ com o seu tom paternalista promove as obsessões do novo regime: o trabalho, os valores tradicionais e o colonialismo”, na avaliação do jornalista francês Vincent Bresson. Apesar das críticas relativas às mudanças políticas e sociais, ao longo do século XX esse clássico pedagógico foi objeto de adaptações na França e em outros países – em livros, filmes, séries e programas de TV e rádio – e serviu de modelo para autores de livros escolares, como, no Brasil, ocorreu com Através do Brasil (1910), de Olavo Bilac e Manoel Bonfim – inspirado também em Cuore (1886), do italiano Edmondo De Amicis –  sucesso na escola primária nas décadas iniciais do século XX, tornando-se um clássico do gênero, que formou gerações de brasileiros. 

Diferentemente do filósofo italiano que inspirou seu pseudônimo, Augustine Foullié optou, não por desafiar, mas por se engajar, ela mesma, no ideal republicano e nacionalista de sua época e propagá-lo por meio do poderoso e exemplar instrumento pedagógico que criou, no qual seu país se apresentava como a utopia de uma grande nação e no qual cada estudante deveria se engajar. Com o sucesso de seu tour da França, imortalizou-se com a inscrição de suas lições nas mentes de gerações de estudantes e de seu nome na história da educação francesa e ocidental.

Maria Mortatti  - 11.02.2025

(Fonte da imagem: BnF-Gallica)

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A POÉTICA MARGINAL DA “GERAÇÃO MIMEÓGRAFO” NO BRASIL / MARIA MORTATTI

 “Poesia marginal” é a denominação atribuída à produção da “Geração mimeógrafo”, constituída de novos poetas brasileiros que, nos anos 1970, durante a ditadura militar pós-1964, escreviam e divulgavam seus poemas “à margem”. Para escapar da censura do regime político e das dificuldades de inserção no meio editorial, recusavam modelos e sistemas literários, acadêmicos, intelectuais e editoriais. Não tinham um projeto ou programa literário. Com liberdade poética, diversidade etária e regional, faziam poesia “coletiva” sobre assuntos do cotidiano, em linguagem coloquial e informal, com tom de improviso, paródias e apropriação de poetas canônicos, protesto políticos contra o regime e contra a crítica literária oficial. Confeccionavam artesanalmente textos e ilustrações em mimeógrafo e buscavam contato direto com o público, expondo sua poesia em muros, praças, ruas, teatros, bares, universidades, eventos e vendendo por preço baixo. 

Apesar da atitude de recusa, transgressão, independência e resistência ao regime autoritário da época, alguns representantes dessa geração se destacaram já na época pela qualidade estética, especialmente por meio da inclusão na antologia 26 poetas hoje (1975), organizada por Heloísa Buarque de Hollanda. Alguns deles tiveram seus poemas publicados e distribuídos por editoras comerciais, e suas obras vêm sendo reunidas, publicadas e estudadas, já com consistente fortuna crítica. Nos anos 1980, apresentei aos meus alunos de ensino médio poetas dessa geração, que então tinha lido e apreciado: Ana Cristina César, Cacaso – ambos falecidos precocemente, além de outros dessa geração, como Torquato Neto, Waly Salomão – e Paulo Leminski. 

O primeiro que me chegou às mãos foi o livro A teus pés: poesia/prosa, de 1982, Ana Cristina César (Rio de Janeiro, 1952-1983), que além de poeta, com quatro livros publicados em vida, dedicou-se às atividades de crítica literária, jornalista e tradutora, com dezena de publicações. No poema “Este livro” me apresentou o manifesto poético de Ana C..: “Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do coração. É prosa que dá prêmio [...]”. Nesse e demais livros seus anteriores e posteriores, reunidos na antologia Poética (Companhia das Letras, 2013,), conheci melhor sua poesia, que, apesar da aparente “simplicidade”, é marcada por “avançada pesquisa poética” com uma “estratégia de linguagem como desvio contínuo, fratura, abertura para múltiplas falas, testemunho do inconcluso e do inacabado”, nas palavras do crítico Ítalo Moriconi.

Antônio Carlos de Brito, o Cacaso (Uberaba/MG,1944; Rio de Janeiro,1987), poeta, professor universitário e letrista de música popular brasileira, para alguns críticos literários é o tutor da “poesia marginal”. Seu livro Beijo na boca e outros poemas (1975) foi o que primeiramente li e apresentei em aulas. Em especial, recordo-me de dois poemas apreciados em atividades de leitura: “Lar doce Lar”: “Minha pátria é minha infância / Por isso vivo no exílio.” E “Estágio do retrato”, em que o poeta, inspirado em Cecília Meireles, pergunta: “Nos olhos de quem terei perdido a minha face?” O conjunto de sua produção – seis livros publicados em via e poemas inéditos, e 60 letras de música –, publicado em Poesia completa (Companhia das Letras, 2020), representa também ideias e dilemas de sua geração, “impactada pela violência da história”. “Embora seus poemas sejam independentes e possam ser lidos separadamente, compõem uma espécie de poema único ou ‘poemão’, que sintetiza vivências subjetivas e coletivas”, segundo a pesquisadora Débora Racy Soares

Paulo Leminski Filho (Curitiba/PR, 1944-1989) é autor de obra prolífica e diversificada, um escritor “multimidia”, em termos atuais. Publicou oito livros de poemas, dois romances, novela infantojuvenil, ensaios, biografia, crítica literária, canções, artigos, crônicas, traduções de clássicos da literatura e transitou, ainda, nas artes gráficas, quadrinhos, TV, jornalismo e publicidade. Segundo Rodrigo Garcia Lopes, na recepção crítica da obra de Leminski costuma-se reduzi-la ao trocadilho e ao haicai, ignorando-se a densidade de muitos de seus “poemas pensantes”. Em carta de 1977 ao poeta Regis Bonvicino, Leminski formula a declaração de princípios de sua poesia: “é a linguagem que tem que estar a serviço da vida, não a vida a serviço da linguagem”. No livro Distraídos venceremos (1987), assim “define” sua poética e de sua geração: “Marginal é quem escreve à margem,/ deixando branca a página / para que a paisagem passe / e deixe tudo claro à sua passagem.” Resistindo ao tempo, sua obra foi reunida em Toda poesia (Companhia das Letras, 2013) e, os inéditos foram publicados no livro O ex-estranho – Paulo Leminski (Iluminuras, 2018), com organização e seleção pela poeta Alice Ruiz S., com quem foi casado, e Áurea Leminski, filha do casal. 

Sob influência difusa de movimentos de contracultura da geração beat (beat generation) – iniciados nos anos 1940 nos EUA, que inspiraram formas de expressão similares em países europeus, e, no Brasil, do movimento modernista pós-1922 e do Tropicalismo/ Tropicália – movimento artístico e cultural de vanguarda, com manifestações principalmente na música popular, no cinema, no teatro, poetas daquela “geração mimeógrafo” compuseram também uma “poética marginal”. Com o “jazz do coração” de Ana C., por meio do “poemão” sintetizado por Cacaso e reconfigurando as palavras de ordem “distraídos venceremos”, de Leminski, esses e outros daquela geração transgressora, cuja qualidade estética foi e é reconhecida pela crítica especializada, continuam lidos e apreciados por leitores do século XXI, com circulação também em redes sociais. E, apesar da diversidade de características dos poetas e da postura transgressora, contestatória e antiprogramática, a “poética marginal” resultante da produção da "geração mimeógrafo" integra um capítulo da história da literatura brasileira.

Maria Mortatti – 02.02.2025


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UMA VIAGEM NAS ASAS DE SELMA LAGERLÖF, PRIMEIRA NOBEL DE LITERATURA / MARIA MORTATTI


“... em reconhecimento do idealismo elevado, da imaginação vívida e da percepção espiritual que caracterizam seus escritos”: essa é a justificativa da Academia Sueca para escolher Selma Ottilia Lovisa Lagerlöf (20.11.1858 – 16.03.1940), como a primeira escritora laureada com o Prêmio Nobel de Literatura (1909). Foi também uma das primeiras escritoras feministas escandinavas e a primeira a integrar a Academia Sueca (1914), tendo se consagrado como uma das maiores escritoras de seu país e conhecida internacionalmente. 

Selma Lagerlöf nasceu e viveu até os 24 anos em Mårbacka, propriedade da família na província sueca de Värmland. Leitora desde cedo, educada em casa como as jovens da época, começou a escrever ainda nessa época. Foi incentivada a publicar seus primeiros versos na revista literária feminista Dagny, fundada pela pioneira ativista dos direitos das mulheres no país, a baronesa Sophie Lejonhufvud Adlersparre (Esselde). Em 1885, formou-se professora e lecionou em escola para meninas em Landskrona, até 1895, quando se mudou para a cidade de Falun e passou a se dedicar apenas à carreira literária. Com a escritora sueca Sophie Elkan (1853-1921) – por quem se apaixonou –, entre 1895 e 1899 viajou para Itália, Egito, Palestina, França, Bélgica e Holanda, recolhendo material para seus livros. Com o dinheiro obtido com seus primeiros livros e com o prêmio Nobel, em 1910 realizou o antigo desejo de comprar de volta a propriedade da família, vendida para salvar dívidas do pai e do irmão. Lá passou a morar até a morte, continuando sua obra de escritora. Além das atividades de fazendeira, dedicou-se a causas feministas e humanistas. Após a morte da amiga escritora, Lagerlöf herdou seus pertences pessoais e converteu um cômodo de sua casa em Mårbacka em um museu dedicado a Sophie Elkan.

Sua obra literária é inspirada nas histórias e lendas populares do seu país, rompendo com o realismo predominante em sua época e inserindo-se na tradição do conto de autoria feminina na Suécia, iniciada com Fredrika Bremer (1801-1865), escritora e pioneira do movimento feminista no país. Em 1891, Selma Lagerlöf publicou seu primeiro romance Gösta Berling Saga (A Saga de Gösta Berling), considerado por críticos literários como sua obra-prima e precursor do realismo mágico. Escreveu, depois, mais de duas dezenas de publicações, alguns póstumos, entre romances, contos, biografia, autobiografia, ensaios e literatura para crianças. No Brasil foram publicadas apenas sete de seus livros, entre os quais Nils Holgerssons underbara resa genom Sverige  (A maravilhosa viagem de Nils Holgersson através da Suécia), seu livro de maior sucesso, que integra o cânone da literatura para crianças e jovens, foi adotado em todas as escolas suecas e traduzido para mais de 60 idiomas, além de adaptações em livros, peças de teatro, ópera, filmes e séries de cinema e TV. 

Publicado em 2 volumes, em 1906 e1907, o livro foi escrito – depois de muita pesquisa – por encomenda do diretor da escola elementar onde ela lecionava, para ensinar geografia e outros aspectos da Suécia aos alunos. O protagonista, Nils Holgersson, com 14 anos, filho de camponeses pobres da região da Escânia, menino preguiçoso, violento e maldoso com animais e pessoas, que só gostava de dormir e comer, é castigado com a transformação em duende e monta num ganso doméstico, que voa na primavera seguindo um bando de patos selvagens até a Patagônia. Durante a viagem, enfrenta sustos e medos, mas com o tempo vai ganhando coragem, descobrindo a Suécia como “uma toalha quadriculada”, participando de aventuras com as aves e aprendendo com elas a se tornar um menino melhor, que respeita as pessoas e a natureza, reconhece a importância do trabalho e da caridade, podendo, então, voltar ao tamanho e à forma humana. 

Apesar de sua finalidade didático-pedagógica, com lições morais, religiosas, humanistas e nacionalistas, características da literatura infantil ocidental da época – como exemplificam os contos de Zacharias Topelius (1818-1898), finlandês de expressão sueca; Cuore, libro per i ragazzi (Coração, livro para meninos) (1886), do italiano Edmondo De Amicis;  Le Tour de la France par deux enfants (Viagem pela França por duas crianças) (1877), da francesa Augustine Fouillée; Heide (1879/1880), da suíça Johanna Spyri, entre outros –  os talentos literários da autora e a qualidade poética de sua narrativa se destacam nessa obra que continua sendo lida e apreciada na Suécia e em outros países, até os dias atuais. Foi elogiada pelos escritores Rainer Maria Rilke e Marguerite Yourcenar e mais recentemente por críticos literários e editores, em diferentes aspectos: um dos primeiros “romances ecológicos” do mundo; uma “fábula de dimensões épicas sobre a redenção e encontrar o bom caminho”; “quase uma rapsódia sueca”. 

A obra de Selma Lagerlöf, em particular A maravilhosa viagem de Nils Holgersson através da Suécia, ficou pouco conhecida e estudada no Brasil ao longo do século XX. A primeira tradução desse livro para o português, feita por Maria de Castro Henriques Oswald, foi publicada em 1953, em Portugal; no Brasil, em 1985, pela Nórdica, foi publicada a tradução de Manoel Paulo Ferreira. Podem-se, no entanto, identificar semelhanças entre o livro protagonizado por Nils e ao menos um livro brasileiro para crianças do início do século XX: Através do Brasil (1910), de Olavo Bilac e Manoel Bonfim, que também teve grande sucesso nas escolas, dada a forma agradável de ensinar às crianças geografia, hábitos, costumes, lendas do País, por meio da narração da viagem dos irmãos Carlos e Alfredo de Recife/PE até Pelotas/RS, em busca do pai. 

Passa o tempo, mudam-se critérios e gostos literários, mas neste século XXI as aventuras e o aprendizado do menino sueco montado nas asas de um ganso, nascidos da pena da feminista sueca e primeira Nobel de Literatura, continuam maravilhando crianças e adultos, muito além das lições de geografia de sua terra natal. Assim são os clássicos: nunca terminaram de dizer o que tinham a nos dizer, como ressalta o escritor italiano Italo Calvino. Certamente, o duradouro sucesso desse clássico sueco se deve às maravilhas da viagem que, pelos olhos de Nils, podemos desfrutar nas asas de Langerlöf, como sugere a poeta brasileira Cecília Meireles: “Assim vai o herói. E assim vai se desenrolando o livro. A técnica é realmente a da receita, - parece fácil. Ai das supostas facilidades literárias. Mas aqui não há nada a temer: Nils viaja com segurança, levado por Selma Lagerlöf...”. Nós, leitores, também!

Maria Mortatti  – 18.01.2025


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HAIDI, A “FILHA DILETA” DE JOAHNNA SPIRY / MARIA MORTATTI

Com 10 anos de idade, ganhei um exemplar de Haidi, a filha das montanhas, adaptação do romance infantojuvenil da escritora suíça de expressão alemã Johanna Spiry (12.06.1827- 07.07.1901). De formato pequeno, capa de fundo amarelo, 126 páginas com algumas ilustrações em preto e branco, o livro foi publicado pela Livraria Exposição do livro (SP), sem data, com tradução por Sylvio Monteiro da adaptação (dos dois volumes originais) pela escritora estadunidense Alice Thorne e publicada em 1961 pela Grosset & Dunlap. Foi um presente de D. Elza Canazza, professora de minha turma (feminina) no 4º. ano primário, como prêmio pelo aproveitamento, com louvor, no ano letivo de 1964 no Grupo Escolar “Pedro José Neto”, de Araraquara/SP. 

Nascida nos Alpes Suíços, Johanna Louise Heusser Spyri começou a escrever aos 43 anos de idade e publicou o primeiro livro em 1873, em Zurich, Alemanha, onde passou a morar depois de casada. Após a morte do marido e do único filho, em 1884, dedicou-se a causas de caridade. Ao longo da vida, escreveu mais de 50 histórias, a maior parte para crianças e com tom didático e religioso, tendo se tornado um ícone na Suíça. 

Seu primeiro romance para crianças é Heide. Escrita em quatro semanas, a história original de Joahnna Spyri foi publicada em duas partes: Heidis Lehr- und Wanderjahre (Os anos de aprendizado e viagens de Heidi), de 1879/1880, e Heidi kann brauchen, was es gelernt hat (Heidi pode usar o que aprendeu), de 1881. Heide (ou Haidi), é o apelido da protagonista, Adelaide, menina órfã de cinco anos, otimista e altruísta, levada pela tia Dete para morar com o avô paterno que vivia sozinho nos Alpes Suíços. Lá, ela aprende e ensina o amor ao próximo, à natureza e a reverência a Deus. Com 10 anos de idade, a tia a leva à casa de uma rica família em Frankfurt, Alemanha, para ser companheira da menina Clara, de 12 anos, paralítica, órfã e solitária. Lá, ela novamente ensina e aprende a generosidade e a alegria de ajudar os outros. Sente saudade da vida nas montanhas e para lá retorna, levada por Clara e seu pai.

Heide teve sucesso imediato e se tornou uma das obras mais conhecidas da literatura suíça e um clássico da literatura infantojuvenil universal. Os livros foram traduzidos para mais de 50 idiomas, com inúmeras adaptações em livros, filmes e séries live-action e de animação de cinema e TV, peças de teatro, histórias em quadrinhos, musicais. Houve também alegação de a história ter sido plagiada de romance suíço de 1830, o que foi contestado por não haver comprovação científica das semelhanças encontradas. 

O exemplar que ganhei há seis décadas, guardei-o com as recordações escolares. Recentemente, reencontrei-o e o reli. Com certeza, a professora o escolheu para me presentear por ser a adaptação então recém-lançada de um clássico da literatura para meninas e com lições exemplares a serem aprendidas e usadas. Assim o li naquela época e gostei. Provavelmente também usei muito do que aprendi com ela e outras protagonistas órfãs de histórias parecidas – como Pollyana, do romance de Eleanor Porter, que li logo em seguida, na tradução de Lobato pela Cia Editora Nacional – as quais foram criticadas por estudiosos da literatura infantil a partir dos anos 1980, justamente pelo tom edificante e didático. Na releitura, as lições de Haidi não me empolgaram. Mas me detive na folha de rosto com o carimbo da Livraria Acadêmica de Araraquara e anotações em manuscrito, abaixo de meu nome: “Lembrança de D. Elza, 12 de dezembro de 1964.” Talvez o livro-lembrança da saudosa professora e do que me ensinou tenha representado a mais duradoura e afetiva lição daqueles tempos de aprendizado com Haidi, a “filha dileta” de Johanna Spyri.

Maria Mortatti - 12.01.2025
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‘ERA UMA VEZ… OS CONTOS DE FADAS’: A ORIGEM ANCESTRAL DAS EXPRESSÕES QUE DESPERTAM A IMAGINAÇÃO DAS CRIANÇAS / MARIA MORTATTI

A expressão “Era uma vez…” convida leitores e ouvintes – crianças, jovens, adultos e idosos – a adentrar o mundo da imaginação. Conhecida e utilizada para introduzir histórias orais e escritas, hoje mais frequentemente as destinadas a crianças, a expressão indica tempo propositalmente vago e impreciso, como forma de marcar o caráter ficcional da narrativa, convidando o leitor/ouvinte a soltar a imaginação.

Em língua francesa, registra-se o uso da expressão, pela primeira vez, pelo escritor e poeta Charles Perrault (1628–1703), no conto “Les souhaits ridicules” (“Os desejos ridículos”), de 1694, incluído na edição de 1871 de sua obra mais famosa, “Histoires ou contes du temps passé, avec des moralités” (“Histórias ou contos do tempo passado com moralidades”), conhecidos como “Les contes de la mêre l'Oye” (“Contos da mamãe Gansa”).

A expressão “era uma vez” e suas variantes, como “houve um tempo”, tornaram-se fórmula e chave mágica também utilizada por outros escritores daquela época, como Madame d'Aulnoy, na França, e do século seguinte, como Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, na França, Dorothea Viehmann (1755–1815), na Alemanha – a contadora de histórias que se tornou fonte de referência para os famosos contos dos irmãos Jacob Ludwing Carl Grimm e Wilhelm Carl Grimm – e Hans Christian Andersen, na Dinamarca.

Em língua inglesa, a expressão correspondente “Once upon a time” e variantes têm origem no século 14, com o poema “Sir Ferumbras”, da canção de gesta – poema épico medieval francês, celebrando os feitos de heróis e escrito para ser declamado – sobre a época do rei Carlos Magno, e com “The Canterbury Tales” (“Contos da Cantuária”) do escritor e filósofo inglês Geoffrey Chaucer. Indicam, ainda, que a expressão como a conhecemos existia desde cerca do ano de 1600, tendo sido consolidada pelas narrativas de Perrault, seguido dos irmãos Grimm e de Andersen, alcançando rápida popularidade e tradução em outros países. E há também os que indicam a existência de histórias similares há mais de 6 mil anos.

Assim nasceram os contos de fadas…

Ao reunir e dar forma literária a narrativas orais na primeira edição, de 1697, de “Contos da mamãe Gansa”, Perrault inaugurou também um novo gênero literário e sua denominação, “contos de fadas” – histórias fantásticas contendo fadas (do latim “fatum”, que significa destino, fatalidade, fado), seres imaginários, geralmente mulheres com poderes sobrenaturais e mágicos –, expandindo seu alcance para outros públicos, além dos salões parisienses onde eram contadas para entretenimento de adultos. Posteriormente se tornaram, junto da expressão “era uma vez”, características de narrativas para crianças.

Por antecedência cronológica, porém, outros estudiosos atribuem à poetisa e tradutora francesa Marie de France as primeiras histórias com fadas, em sua obra “Lais”, coletânea de 12 poemas narrativos, escritos entre 1160 e 1215. Outros, ainda, atribuem a origem da expressão “contos de fadas” à escritora Marie-Catherine Le Jumel de Barneville, Baronesa d'Aulnoy, que, em 1690, inaugurou esse gênero literário na França, usando a expressão “contes de fée”, no conto “L’Île de la Félicité” (“Ilha da felicidade”) contido no romance “Histoire d’Hypolite, Comte de Duglas”.

Nos anos posteriores, aproximadamente 90 contos de fadas foram publicados por escritores e escritoras, como Gabrielle-Suzanne Barbot, na França. Nas décadas finais do século 17, diminuiu consideravelmente a publicação desse gênero literário. Perrault passou a escrever para crianças, amenizando passagens de terror e incluindo mais elementos maravilhosos, como fizeram depois os irmãos Grimm e, de certo modo, Andersen, cujas histórias nem sempre têm entrecho ou final feliz.

A história é antiga e nem sempre são consensuais as reivindicações de paternidades e maternidades, denominações e desdobramentos. No entanto, “era uma vez” e “contos de fadas” se tornaram, mais do que fórmulas/clichês, chaves mágicas de matrizes literárias clássicas, com inumeráveis versões escritas, orais, cinematográficas e em mídias contemporâneas, além de inumeráveis estudos e interpretações, como em “Psicanálise dos contos de fadas” (1970), do austríaco Bruno Bettelheim, e “Morfologia do conto maravilhoso” (1928), do russo Vladimir Propp.

E continuam convidando leitores e ouvintes a se deixarem encantar pelo mundo da imaginação, para deleite e satisfação da necessidade humana de fantasia, direito humano básico, nas palavras do crítico literário Antonio Candido.

Maria Mortatti - 13.06.2024

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Publicado em: https://theconversation.com/era-uma-vez-os-contos-de-fadas-a-origem-ancestral-das-expressoes-que-despertam-a-imaginacao-das-criancas-231121?fbclid=IwZXh0bgNhZW0CMTEAAR1HuSMrqMoh-7ZRjJikz_7Kh1Zz9lptNvgB8R6NfMCy27Y2GpgGjQk7-gs_aem_ARr5gxAj0evogrqSCBpH6S6AHBd9QXymNk5fLndPT0QKPIMaqhmaMop_-6C8QgxMWE5JmCw0caC8w711rzlfVgrH


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ALFABETIZAÇÃO E ANALFABETISMO NO BRASIL: AVANÇOS, DÍVIDAS HISTÓRICAS E DESAFIOS PARA O PRESENTE / MARIA MORTATTI

 De acordo com resultados do Censo Demográfico 2022 do IBGE, a taxa de alfabetização – aferida com base no critério de saber ler e escrever um bilhete simples – foi de 93%, e a de analfabetismo, de 7,9%. Esses resultados indicam avanços importantes: em relação ao Censo de 2010, houve queda de quase dois pontos percentuais no analfabetismo da população com 15 anos ou mais. Mas também evidenciam a persistência de dívidas históricas: são ainda consideráveis as diferenças na distribuição dessas taxas por regiões geográficas, classe social, etnia, raça e gênero. Recordando as palavras de Paulo Freire, alfabetização e analfabetismo não são problemas estritamente linguísticos, pedagógicos e metodológicos, mas envolvem aspectos mais amplos no âmbito político, social e educacional. Apesar das políticas públicas e iniciativas de entidades da sociedade civil, são muitos desafios a enfrentar para garantir o direito de cada cidadão brasileiro à leitura e à escrita –  não apenas de “um bilhete simples” –, visando à construção de um projeto de nação mais justa e igualitária.

Maria Mortatti – 24.05.2024

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