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ROLAND BARTHES E O PRAZER DO TEXTO: É ISSO! / MARIA MORTATTI

"(...) as leituras da infância deixam nós a imagem dos lugares e dias em que as fizemos", escreve o francês Marcel Proust (10.07.1871-18.11.1922), no opúsculo Sobre a leitura (Sur la lecture), originalmente prefácio para sua tradução, em 1906, de Sesame and lilies (1865), um dos livros mais conhecidos do esteta inglês John Ruskin. 

Não só as da infância. Uma das experiências recentes de leitura me fez lembrar dessa constatação, de quando e por que li os primeiros volumes de À la recherche du temps perdu (Em busca do tempo perdido), de Proust, e dos lugares e dias de tantas outras leituras de que me lembrei quando o li. Uma, em especial, veio-me involuntariamente à memória, a do livro O prazer do texto (Le plaisir du texte), do escritor e crítico literário francês Roland Barthes (12.11.1915- 26.03.1980), com tradução brasileira de J. Guinsburg (Perspectiva, 198?). Li-o um ou dois anos antes do opúsculo de Proust. Foi indicado por um professor que eu admirava. O exemplar era emprestado da biblioteca da faculdade. 

Em um sábado à noite, talvez do ano de 1987, enquanto esperava o horário para um prazeroso passeio com os amigos, sentei-me na poltrona da sala, com lápis e papel ao lado, e comecei a ler como quem apenas se ocupa de uma distração. Aos poucos, porém, fui penetrando no texto. Levantei-me. Fui para cadeira da mesa de jantar. Aprumei-me. Comecei a anotar. Tudo era descoberta. Desisti do passeio, apesar da insistência dos amigos. Retomei a leitura e assim fui até a madrugada. Na memória ficou uma imagem: o prazer do texto, o prazer de desabotoar o primeiro botão da blusa... Não sei se as palavras de Barthes eram exatamente essas, mas assim gravei na memória. 

Anos depois, comprei um exemplar da tradução brasileira. Localizei o trecho. As palavras eram parecidas, mas o sentido se renovou prazerosamente. E assim foi numa outra noite de sábado, quase quatro décadas depois, quando escrevia o prefácio para o livro Cahier de poésie 3 / Caderno de poesia 3, de Michel Thiollent (Scortecci Editora). Reli o livro de Barthes e lá encontrei minhas anotações de antigos momentos de leitura e dos pequenos pormenores que fizeram renascer conexões intertextuais infinitas e angustiantes com outros autores, com “a desenvoltura que faz com que o texto anterior provenha do texto ulterior”, como as macieiras normandas de Gustave Flaubert que Barthes lê a partir de Proust. 

Aquele primeiro botão de sentido cintilou novamente. O prazer do texto é a intermitência. O que seduz é a cintilação da pele entre duas bordas. Assim é a descoberta da relação erótica com os livros que nos escolhem ou escolhemos. Assim foi também com esse livro de Barthes, que despertou em mim o desejo de conhecer sua vasta e sedutora obra. O que faz de um escrito um texto é sua vontade de fruição, seu brio, o ponto onde ultrapassa a tagalerice e arranca do leitor, não um juízo de valor – é bom ou ruim –, mas um juízo de fruição estética: “É isso!”. “O texto de prazer é Babel feliz”.

Maria Mortatti – 28.05.2025