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BRECHT E O BEIJO VERMELHO / MARIA MORTATTI


Saí para caminhar, ensaiando mentalmente a declamação de três poemas do dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht (10.02.1898 – 14.08.1956): “Para ler de manhã e à noite”, “Se fôssemos finitos”, “Elogio do aprendizado”. Fui surpreendida por três pessoas paradas junto a um banco de concreto e ao lado de um carrinho carregado de material reciclável. Uma mulher sorridente me pediu dinheiro. Justifiquei-me: não carrego em caminhadas. Começamos a conversar. Sentei-me no banco ao lado de M., perguntei os nomes delas e dele, disse o meu, e a conversa seguiu. V. me apresentou o filho J. sentado, cabisbaixo, no chão, ao lado do carrinho, provocando-o: "Está assim por causa de uma mulher". M. contou de seu medo de morrer de trombose na perna. V. elogiou meu vestido e o esmalte nas unhas: “Como eu queria pintar minhas unhas de vermelho! Acho tão chic. Mas nem ficava bom. Ninguém vai reparar nas minhas unhas feias e sujas....”. “Ah! Se você gosta tanto, vou lhe dar um vidro desse esmalte. Chama ‘Beijo’”. Animou-se: "Eu quero um Beijo". Combinamos: amanhã ela me espera no mesmo local. Animei-me também. Em retribuição, ofereci a poesia que carregava comigo. Apresentei informações breves sobre a vida e obra de Brecht: alemão,  nascido há 126 anos, que escreveu poesia e peças de teatro sobre problemas sociais, sobre a pobreza e também sobre as coisas simples e bonitas da vida.

Declamei dois dos poemas que vinha ensaiando: “Para ler de manhã e à noite” e "Se fôssemos infinitos”. Ouviram, atentos e curiosos. Gostaram. Aplaudiram. Convidei para uma foto. Não aceitaram, infelizmente: "Melhor não. A gente é morador de rua, vai ficar tudo feio... " Mas J. se levantou, abriu um sorriso e se ofereceu: “Faço sua foto. Quer?”. Fez um ensaio fotográfico, com esmero de profissional: sugeria poses, mostrava as provas, tirava novas fotos e ajudou a escolher as melhores. Agradeci e elogiei seu dom de artista. Despedi-me: “Cuidem-se. Amanhã eu volto com um Beijo”. 

Um encontro tocante. Registrado na delicadeza das imagens captadas pelo olhar poético do jovem J.. Para lembrar de manhã e à noite do aprendizado sobre a finitude da vida e a infinita beleza da poesia. 

Maria Mortatti – 10.02.2024