(A vigília dos peixes – poemas, de Heloísa Prazeres. Scortecci Editora, 2021)
“Um bom poema é aquele que nos dá a impressão de que está lendo a gente e não a gente a ele…”, adverte o poeta Mário Quintana. É essa a impressão que se tem ao ler este novo livro de Heloísa Prazeres, em que estão reunidos 68 poemas, organizados em três partes – “nome de família”; “o tempo não detém a vida”; “nossa cabeceira” – seguidas de fortuna crítica da obra da autora.
Em versos livres, plenos de ritmo, musicalidade, plasticidade, ecoando memórias familiares e referências literárias, pictóricas e religiosas, a poeta cria efeitos sinestésicos, com entrecruzamento de sensações e sentidos nos planos semântico e sintático. Por meio de delicado, refinado e vigoroso labor poético, recria, na sequência dos poemas, o movimento ondulatório do sono em vigília dos animais aquáticos que nos precedem em milhões de anos sobre a face da Terra e nos expõem à força e à fragilidade da condição humana. Esse é o movimento dos poemas-peixes, metáfora original sintetizada no poema que dá título ao livro:
convincente é a vigília dos peixescarentes de pálpebras para o breuancoram-se nas barbatanas –seus débeis corposdescem ao fundo e sobempara respirar. Sem sono profundoevitam serem varridospelas correntes oceânicasrepousam em estado de alertaconsoantes aos poetas
É nesse estado humanamente ambíguo, quando “a noite cava silêncios”, que o eu lírico abre as “gavetas da escrivaninha”, retira o peso sobre os “destinos em maços de papel”, “firma o lápis” e desenha a “nesga do convívio”, para esticar a vida que “o tempo não detém”.
Um livro escrito na “jamais vã vigília da poesia” e que assim nos lê, espreita, inquieta e instiga ao estado de repouso em alerta. Um livro que pede para ser lido e relido, que nos toca com seu intenso lirismo e convida ao recomeço sem cessar, como o “ofício de poeta para a reconstrução do mundo” (Sophia M. B. Andresen). É mais um belo livro presente da poeta Heloísa Prazeres, que nos acolhe, em “nesga de convívio” e esperança.
06 de novembro de 2021
Maria Mortatti