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AS VALSAS E OS DIAS / MARIA MORTATTI

Ela acordou cedo naquele sábado, 30 de dezembro de 1951. Provavelmente cantarolava “Fascinação”, com Carlos Galhardo – no LP 78 rpm. O que sentia e o que se seguiu não devem ter sido muito diferentes do que acontecia com a maioria das “mulheres de família’ dos meados do século XX. A apaixonada virginiana de 27 anos acreditava que, casando-se, poderia, enfim, realizar os sonhos mais lindos com Vinício, o charmoso canceriano que a escolhera. Tenho certeza de que não deu certo. Nada muito diferente. Exceto, talvez, pelo fato de que aquele dia prenunciava o que viria a ser, quase três anos depois, o início de minha história. Também não muito diferente da maioria das "filhas de boa família" da segunda metade do século passado. Exceto, talvez, pelo fato de que também em um sábado 30 de dezembro – de 1978 – esta escorpiana acreditava que iria, enfim, virar a página da história de mulheres infelizes e redimir sua condição de herdeira desavisada, ingênua ou obediente. Certeza que não deu, mesmo. Entendi: não adiantava insistir no erro. Então, no segundo casamento, mudei a data: 12 de fevereiro do penúltimo ano do milênio. Sem fantasia, nem simbologia. Apenas por uma conveniência qualquer. Também nada muito diferente do que fazem tantas mulheres de boas ou más famílias. Exceto, talvez, porque daquela vez eu tenha ido mais longe: acreditava que com 44 anos de vida podia apagar o passado e reescrever uma história correta e cordial. Com toda a certeza: não deu, mesmo! Nunca daria! E foi pior! Não cometi o erro pela terceira vez. Ou amar e ser amada, ou nada. Escolhi a união estável com a poesia.

Seja como tenha sido para mim e para eles, se ainda vivos, Rosina e Vinício estariam hoje comemorando 72 anos de casamento. Acho que – como fazia todos os dias – ela  acordaria cedo para fazer café, levar uma xícara para ele na cama e cuidar do jardim, e ouvindo a valsa “Aniversário de Casamento” – no aparelho de CD – e cantarolando provavelmente com Francisco Petrônio: “Dois corações neste dia feliz/revivem momentos sublimes de amor...”. Sobre a mesa da sala de jantar estariam os habituais presentes dele nessa data: uma dúzia de rosas vermelhas e uma caixa de bombons “Sonho de valsa”, acompanhados de um cartão, em que sempre me parecia estar escrito um lacônico e disfarçado – mas aparentemente sincero – pedido de perdão. No dia seguinte, ela cantaria a valsa “Adeus, ano velho! Feliz ano novo!”, de João Dias, lançada no mês de seu casamento. 

Se foram infelizes e permaneceram juntos apenas por conveniência, hoje já não tenho mais certeza. Também não importa mais. Essa foi a história deles. Espio, apenas, nas lembranças, nas fotografias e nas – surpreendentes, para mim! – cartas de amor que trocaram, durante o noivado. Encontrei-as, por acaso, no fundo da gaveta da cômoda de minha mãe, dias depois de sua morte, em 2008. Cuidadosamente conservadas, dentro de uma caixa de bombons, embrulhada em um pedaço de cetim branco – já amarelado –  da cauda de seu vestido de noiva.

Com o tempo compreendi que datas pouco importam. Nem importa saber se é diferente do que acontece com mulheres do século XXI. Apenas sei que estar viva, amar e ser amada é uma esperança de conquista diária. Árdua, trabalhosa e muitas vezes improvável e incompreensível. Essa é a história possível e crível de Rosina e Vinício. Como aquelas surpreendentes cartas de amor. Como a poesia. Que quase sempre me salva do perigo das certezas e me expõe à vulnerabilidade desejante suscetível aos mistérios da paixão.

Minha mãe cantava. Em tempos de alegria, em tempos de tristeza. “A capella” ou acompanhando seus cantores preferidos. Um repertório especial para cada data de seu calendário afetivo. Suas valsas prediletas persistem na minha memória. Neste penúltimo dia de dezembro, em madrugada quente de lua cheia, canto com ela "Fascinação" e a valsa de final de ano, para embalar o menino Arthur, que adormece em meu colo, enquanto reescrevo esta crônica de aniversários de casamentos. A ele e a quem mais desejar ouvir: “Feliz ano novo!/Que tudo se realize/No ano que vai nascer!/Muito dinheiro no bolso,/Saúde pra dar e vender!//Para os solteiros, sorte no amor/Nenhuma esperança perdida/Para os casados, nenhuma briga/Paz e sossego na vida.”
 
Maria Mortatti – 30.12.2023