Assim foi no Réveillon de 2020 – o melhor da minha vida. Sozinha, em estado de clausura durante a pandemia de Covid 19, preparei-me para uma ceia com bacalhau, que não deu certo – por incompetência de minha parte –, improvisei com a jantinha trivial requentada e, sem perder a leveza, caprichei nos preparativos para o encontro comigo: maquiagem, cabelo, vestido, sapatos, brincos, anel, perfume, bom vinho, boa música, votos de boas festas aos amigos virtuais, leitura do diário daquele ano e o registro na crônica que terminava com um voto de esperança: "Amo; logo, existo! A poesia me salva! (...) E onde talvez se esperasse um ‘Fim’, que conste sempre ‘Sim’! Um brinde à vida!”
No último dia de 2022, desejando que todos os meus dias do novo ano fossem de celebração da vida com poesia e cantoria, preparei-me para o karaokê. Também não deu certo. Retomei, então, o livro de poesia que finalizava, cantarolado as músicas de meu repertório – de “Tiro ao Álvaro” a “Non, je ne regrette rien”, acompanhada pelos estrondos de fogos de artifício. E escrevi a alvissareira crônica sobre as profecias para 2023.
“Profecia”, do grego “prophetia”, significa “capacidade de interpretar o desejo dos deuses” e é formada pela junção das palavras “profetes” (“à frente”) e “phanai” (“falar”). “Prefácio”, do latim “praefatio”, aquilo que é dito (“fatio”) antes (“præ”). Præfatio sacrorum era a fórmula pronunciada antes de uma cerimônia sagrada. Não por acaso linguístico, "profecia" é também anagrama de "prefácio". E, para a sorte de alguns, às vezes coincidem também no desejo dos deuses.
Se são profecia ou prefácio minhas escolhas e decisões na profana cerimônia de virada de ano, só é possível saber depois que a história é vivida e escrita. Das profecias de 2020 e 2023, algumas se realizaram, sim: escrevi muito. Outras se esvanecerem num duvidoso fim. Perdi muito. De tudo ficou o registro em meu infindável diário íntimo, na poesia da enlouquecida, na prosa consoladora e no agradecimento aos novos e antigos amigos que estiveram comigo, me ouviram e me leram. Nesta noite de Réveillon, talvez mais cética que profética, pouco me empolgam os estrondos dos fogos de artifício que soam ao longe enquanto escrevo estas reflexões em tom de posfácio a 2023. Não, não me arrependo de nada. Mas, para o ano bissexto e dragoniano que se inicia, atrevo-me apenas a esboçar, com toda cautela e um quê de esperança, o início do que talvez possa vir a ser um prefácio: que em 2024 ao menos a prosa e a poesia nunca me faltem “para resistir em tempos de trevas/para celebrar em tempos de paz." Como um renovado e imprescindível brinde à vida – ainda que posfácio rime com epitáfio –, que eu nunca me esqueça: escrevo; logo, existo!
Maria Mortatti – 1º. de janeiro de 2024