Em 19.09.2018, eu finalizava o ensaio “Profana Comédia: esboço de uma autobiografia não autorizada", que escrevi como resposta ao convite do professor Diogo Roiz (UFMS), para integrar o volume 2 de seu projeto de biografias de historiadoras da educação brasileira. Muitos foram os dilemas para escolher entre os caminhos que se bifurcam na escrita de uma autobiografia intelectual. Em movimento apaixonado – como sempre – tomei decisões arriscadas e instigantes, como sugere o título do ensaio. Não vou me antecipar com explicações. Quem ler poderá avaliar se fui bem-sucedida. Por ora, registro apenas a recordação do ambiente mental e afetivo em que o escrevi. O cenário é a "sala 50" – minha sala de trabalho na Unesp-Marília. O enredo foi construído com base em algumas caixas de documentos que estão no meu acervo lá sediado. As inspirações literárias são predominantemente Dante e Borges. Daquele, o amor por minha musa Beatriz “che move il sole e l’altre stelle”. De Borges, no conto “Tlön, uqbar, orbis tertius”, a síntese da conversa entre ele e Casares: “os espelhos e a cópula são abomináveis porque multiplicam o número dos homens [... e mulheres]”. A conclusão foram apenas muitas perguntas...
Hoje, recebi um exemplar impresso do volume 2 do livro em que o ensaio foi publicado e encontrei reflexos de imagens copulando em espelhos do tempo. Por acaso(?), lembrei-me de “De minha vida: poesia e verdade”, autobiografia de Goethe. Comecei a folheá-lo. Por acaso(?), voltei ao título e comecei a pensar em biografias e autobiografias, biografados e autobiografadas e na relação (promíscua?) entre poesia e verdade: poesia é verdade? Poesia ou verdade? Foi assim que me lembrei (por acaso?) da data em que finalizei o ensaio. Reli e não me arrependi de minhas escolhas cinco anos atrás. Apenas não tenho ainda respostas às perguntas finais: “O que dirá a autora daquela narrativa imaginária, na condição de leitora de sua autobiografia não autorizada? Concordará com o pacto auto/heterobiográfico que lhe proponho? O que dirão leitores de sua geração? E os mais novos? E os que ainda vão nascer?” (p. 31)
Foi publicado no livro As historiadoras e os gênero(s) na escrita da História - Volume 2 - Uma geração de pesquisadoras que consolidou os estudos históricos no Brasil - Org: Diogo Roiz; Rebeca Gontijo; Tânia Zimmermann (Mercado de Letras, 2023, 705 p.). Sinto-me honrada em participar desse belo projeto, ao lado de ilustres mulheres historiadoras. Os dois volumes já publicados e o terceiro, em preparação, compõem uma obra de referência pioneira no campo da historiografia não apenas brasileira, como destaca o historiador inglês Peter Burke no prefácio: "Como estrangeiro fiquei agradavelmente surpreso ao saber que houve tantas pioneiras no estudo da história brasileira. Foi uma boa ideia torná-las objeto desse ambicioso e minucioso estudo coletivo, remediando a negligência anterior de suas contribuições, combinando informações de uma ampla gama de fontes – especialmente memórias, autobiografias e entrevistas – e mostrando consciência dos problemas da escrita de biografias intelectuais. Os três volumes farão um trabalho de referência extremamente útil, bem como fornecerão material para responder à pergunta se as mulheres fizeram uma contribuição distinta, bem como uma contribuição significativa para o conhecimento histórico. Seria bom ver volumes semelhantes sobre as pioneiras femininas no estudo da história britânica, de Catherine Macaulay no século XVIII até hoje."
Maria Mortatti – 22.12.2023