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NO CAMINHO DO AMOR

 II

A biblioteca pública ficava a quatro quadras de casa. Certo impulso me atraía para lá, e eu passava horas, às vezes, para escolher um livro, sem indicação nenhuma, apenas pelos mistérios que anunciavam o título, ou a capa, ou uma passagem lida ao acaso. Levava-o, então, para casa e trancava-me no quarto para conferir. Se me agradava, o livro era devorado, e novas necessidades surgiam; se não, voltava ao local do crime, em busca de novas aventuras.

Nessas expedições de adolescente pela biblioteca, alguns mistérios permaneceram insondáveis. Proust foi um deles. Não sei se por azar ou sorte, seus livros ficavam na última prateleira de uma das estantes, acessível apenas com o auxílio de uma escada. Quando não estava de saia, aventurava-me a subir até eles, olhá-los e manuseá-los, com uma adoração quase religiosa, tentando adivinhar o que se escondia por trás de títulos tão sugestivos, enfeixados pelo enigmático Em busca do tempo perdidoNo caminho de Swan, À sombra das raparigas em flor, O caminho de Guermantes, Sodoma e Gomorra, A prisioneira, A fugitiva, O tempo redescoberto. 

Não ousava lê-los, com medo talvez de profanar o sagrado encanto. Tantas vezes os reencontrei depois daqueles namoros vespertinos, mas era como se eles pertencessem a outro, e eu, que os tinha recusado uma vez, somente pudesse admirá-los, nunca possuí-los. Uma espécie de culpa envergonhada me incomodava, sobretudo pela profissão que escolhi. Como poderia uma professora de literatura não ter lido Proust? E sempre me recriminava: ainda era tempo de recuperar a razão e iniciar a leitura. 

Acabei me casando, mudando de cidade, outras leituras se fizeram mais urgentes e me esqueci das antigas paixões. Até que Proust me apareceu novamente e me pegou de surpresa, desnuda e entregue, completamente indefesa, nas mãos de um homem que me ocupava inteira. [...] 

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[Trecho do conto "No caminho do amor", do livro Mulher emudecida (inédito), de Maria Mortatti.
Esse livro é o primeiro da trilogia com Mulher umedecida (poemas), Scortecci, 1a. ed. 2020; 2a ed. rev e ampl. 2021; e Mulher enlouquecida (novela) - inédito.]

MARIA MORTATTI - 21.01.2021 - 21h21