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LIÇÃO DE CASA

I

Acordo irritada. É sábado: meu dia de fazer faxina. Ponho um disco de Wagner, o “Parsifal”, e me sento para o primeiro café e o primeiro ci­garro. Na poltrona em que estou, posso ver a sala toda. A conservação é mui­to mais trabalhosa do que a conquista. Os revolucionários que me perdoem.

A faxineira tinha me alertado para a necessidade de a faxina ser feita semanalmente, mas, por estar me saindo muito cara e inútil, propus que ela viesse a cada quinze dias. Pagar por um serviço que deverá começar sempre do mesmo ponto e nunca chegar a outro lugar sempre me pareceu absurdo e incompreensível. E por que sempre há alguém disposto a fazê-lo ou a en­comendá-lo?

E o meu trabalho de ensinar? O que venho fazendo nesses dez anos de magistério? Serei também inútil a quem encomenda meus serviços? A quem interessam meus sonhos? Porque posso compreender meu ofício de professora. A faxina de hoje, ainda que se repita amanhã, nunca começará nem terminará no mesmo lugar, nem será feita do mesmo jeito. Quem quer a ousadia do caminho por fazer?

A consciência tinha me alertado para a necessidade de lecionar apenas para aqueles deserdados do direito de conhecer e participar. Mas, por estar me saindo caro o barateamento da minha força de trabalho, propus-me a encarar a contradição de vender os sonhos de transformação a quem só po­de interessar a conservação. Esse serviço que sempre me parecera absurdo tornou-se imprescindível e, mesmo assim, incompreensível. Em cômodos abarrotados de móveis e tapetes, é tentador varrer a sujeira para debaixo deles. Difícil é fazer uma boa faxina em cômodos seminus.

II

— Professora, como é isso de dar aulas em escola pública e escola particular?

— É necessário.

— Tem diferença?

— Eu sou a mesma.

— E os sonhos?

— E quem corrige os textos dos alunos e prepara minhas aulas, en­quanto eu durmo?

III

Rápido, mulher! Acordar antes do despertador. Fazer café, fumar um cigarro, fazer cocô, tomar banho, preparar a aula, se vestir, tirar o carro da garagem. Voar pelas ruas dá uma grande sensação de liberdade. Ver os mo­toristas se xingando com gestos de braços e mãos, os semáforos e setas co­mandando nossos rumos.

Bom dia, colegas! Muito trabalho e pouco dinheiro: só a greve poderia ter resolvido. Bom dia, alunos! Realismo e idealismo na literatura. “Questão de bom-senso e bom-gosto.” Fiquem quietos! O conhecimento é importan­te para a vida. A língua e a literatura são fundamentais. Blá, blá, blá...blá. Bom fim de semana e leiam bastante.

IV

— Espera um pouco, professora. Afinal o que você está querendo de nós? Onde quer chegar? Se nós pagamos a escola, temos o direito de esco­lher o que queremos aprender e o que será útil para nós.

— Ora, eu já apresentei e discuti com vocês a proposta de trabalho. Quero alunos críticos, que saibam ler o mundo, pensar sobre ele e transformá-lo; que vejam a língua e a literatura como fatos históricos e sociais e, portan­to, em movimento; que não só reproduzam, mas também produzam conhe­cimentos. E isso é útil, não apenas para o vestibular, mas para a vida de vocês.

— Mas por que essas leituras e discussões intermináveis que sempre nos levam à loucura de tudo questionar? Você bagunça a nossa cabeça. Nossos textos nunca estão bons. Você sempre quer mais. Quando pensamos ter che­gado à verdade, você insiste em relativizá-la, com esse papo de “verdades”, do “é assim, mas também pode ser assado”...

— ... ou cozido.

— É, mas eu não quero fazer Letras ou algo parecido. Escolhi a área de Exatas, que dá mais futuro, como tantos outros colegas meus e outros professores. Eles são especialistas nas suas disciplinas e isso lhes basta para a profissão. E, aliás, eu nem quero ser professora... Conheço tantos profissio­nais que se saíram bem na vida, como meu pai, e não precisam ficar questio­nando tudo, lendo e escrevendo, e fazendo greves como vocês. Pelo con­trário... O que já aprendi serve para passar no vestibular.

— O que é mais importante para você? Um conhecimento pronto que você simplesmente devolve ao professor numa prova e depois esquece, ou aquele conhecimento que vamos construindo juntos (penosa, mas prazero­samente) e do qual nos apropriamos, à medida que sua história se insere no fluxo da nossa?

— Eu quero apenas ser feliz, passar no vestibular e ter sucesso e di­nheiro com a carreira escolhida.

— O que é “ser feliz”? É não conhecer, não pensar, não ter consciên­cia? É simplesmente cantar como a pobre ceifeira de Fernando Pessoa?

— Não adianta! Não dá para conversar com você. Eu não sei bem por quê, mas eu não consigo argumentar. Você me enreda e, apesar de eu não concordar, quase me sinto convencida. Mas não é só isso que quero.

— Eu não quero seduzir vocês e envolvê-los de modo que sigam, ce­gos, o canto da sereia. Quero convencê-los, sim, mas não autoritariamente. Quero apenas partilhar os sonhos de transformação, os projetos políticos para a educação. Quero fazer aquilo em que acredito. Quero que vocês se­jam grandes e inteiros.

— E se nossos sonhos não forem os mesmos?

V

— Nossos filhos estão sem aulas. Quem pagará os prejuízos?

— Devemos descontar das mensalidades os dias em que nossos filhos estão sem aulas. Não vamos pagar por um serviço que não recebemos.

— Mas a situação do magistério é grave em todo o país. Eu, mesma, que sou professora universitária, sinto na pele. Temos de, pelo menos, dis­cutir as reivindicações dos professores. Se quisermos boa educação, infeliz­mente temos de pagar por ela. Se não fosse assim, eu poria meu filho numa escola do estado.

— O que eles querem é muita coisa. Já estão ganhando mais do que os professores da escola pública e ainda reclamam. Não sei por que essa gre­ve. Dizem que é coisa do sindicato e de meia dúzia de agitadores.

— Não podemos permitir que professores comunistas continuem en­sinando nossos filhos.

— Nós, os burgueses, temos de nos opor. Precisamos acabar com essa greve.

— É isso mesmo. E ainda tem aqueles que só porque fazem pós-graduação ficam experimentando métodos de ensino com nossos filhos.

— Aquela mãe tem razão. Poderíamos discutir as reivindicações com os professores.

— Não podemos ceder ao que eles pedem. Que voltem ao trabalho e depois conversaremos sobre o aumento de salário.

VI

Engolir a comida que é argamassa e dá força aos argonautas. Navegar é preciso, viver não é preciso. As ruas! Oh, como é bonito ver o brilho do sol se refletindo no asfalto! Boa tarde, colegas! Outra greve? A mesma luta? A estatização e a privatização. Educação é prioridade? Promessas e mentiras elegem governador. Boa tarde, alunos! A relação entre conhecimento e rea­lidade. A historicidade dos conceitos. Este texto e aquele. A linguagem co­mo atividade estruturante do mundo. Ler e escrever como forma de produ­ção de significações. Bom fim de semana e leiam bastante.

VII

— Professora, será que sou boa aluna? Meus textos atingem seus objetivos? O que a senhora acha do nosso trabalho? Será que conseguiremos ser boas professoras, apesar de estudarmos em escola pública?

— Não se trata de vocês atingirem ou não meus objetivos. O buraco é um pouco mais embaixo! É preciso antes esclarecer quais são os nossos objetivos, se são comuns, e o que cada um de nós queria quando optou por um curso de formação de professores e por que na escola pública. Eu não estou aqui por mero acaso, é uma luta antiga...

— Mas, professora, a senhora sabe. Nosso 1º. grau foi ruim. A gente só estudava em livro didático. A professora chegava e perguntava: “Em que página paramos?” E era só seguir em frente até terminar o livro no final do ano. Depois teve sempre aquelas greves, e o professor trabalhava do jeito que ganhava. A gente tem de ler, discutir, escrever e descobrir a gente mes­mo os erros. E depois a gente nunca sabe onde a senhora quer chegar. En­graçado é que vocês também ganham pouco aqui...

— Pois é! Aí está o X da questão. Estou propondo que vocês pensem e se situem como gente, como cidadãos, apesar de tudo; que não repitam apenas o que o professor quer ouvir, mas que façam do ler e escrever cami­nhos de descoberta e transformação; que encarem a língua e a literatura co­mo fatos históricos e sociais; que aprendam a ver que nada é tão natural­mente o que é, que não possa ser mudado.

— É, mas a senhora tem de concordar que é muito difícil começar a pensar quando só nos ensinaram a decorar; a ter opinião e expressá-la, quando diziam que a gente pensava e falava errado, A senhora exige muito, e eu sei que isso é bom, mas, às vezes, me sinto incapaz e desanimo só de pensar nas coisas todas que deixei de aprender ou que desaprendi nesse tempo to­do. E aí penso em desistir, que estudar não é pra mim. Que nunca consegui­rei ser uma professora desse jeito que a senhora propõe. Ainda mais ganhando tão pouco como vocês ganham. Vale a pena?

— Claro que é difícil, para mim e para vocês. Mas se exijo tanto é por­que sei que vocês podem e têm direito à participação na produção de co­nhecimento, à construção de uma história pessoal e coletiva em que não pese a noção imobilista de incapacidade que nos obrigam a introjetar. Não quero vê-las, e a mim, também, nos lamentando da deficiência como víti­mas de um sistema, porque assim acabamos nos tornando nossos carrascos.

— Agora já estou entendendo melhor essas coisas todas. Se fosse um ano atrás, quando cheguei aqui, eu diria que a senhora era louca e que falava difícil só pra nos humilhar.

— E eu insisti em respeito a vocês. Seria tão fácil “abaixar o nível” e me adequar às “carências da clientela”...

— Hoje sei que a senhora está tentando me convencer de alguma coi­sa boa para nós como alunas e futuras professoras. Eu gostaria tanto de re­cuperar o tempo perdido, de conhecer bastante, de saber fazer isso com meus alunos um dia... Será que vou conseguir?

— Quero acreditar que sim, que os sonhos que estamos partilhando nos iluminem caminhos por fazer. Quero convencê-los, através da tomada de consciência, de que é possível construirmos juntos a escola que quere­mos e a sociedade que merecemos, não com modelos prontos, mas com aqueles que vislumbramos, quando fazemos tudo em que acreditamos, ape­sar de...

— É, vamos brigar muito ainda, porque a senhora nunca está conten­te e vive dizendo que não se conforma de haver apenas uma verdade. Tem sempre outras... Quero seguir por esse caminho, ainda que não sei bem aon­de chegaremos. Mas gostaria que todos os meus desejos não ficassem ape­nas nesse louco “gostaria”.

VII

— Senhores pais, vocês já vêm percebendo há muito tempo como vai mal a escola pública. Nela estão faltando desde as condições mínimas de funcio­namento até aquelas básicas para o ensino: boa remuneração para professo­res e, inclusive, professores.

— É verdade! Prometeram refeições para a “jornada única” e até ago­ra meu filho só comeu leite com bolacha nas seis horas que passa na escola.

— Pois é. E, além disso, nunca nos últimos 25 anos, nós, professores, sofremos um arrocho salarial tão grande como agora. Vejam neste gráfico (...) Chegamos ao fundo do poço! Como pode um professor dar boas aulas, prepará-las e corrigir material de aluno e ainda estudar, se, para sobreviver, temos de arranjar outros empregos além das horas na escola? Por isso esta­mos em greve, que é hoje a nossa última arma para defender a escola pública.

— É por isso, então, que mesmo antes da greve meus filhos não tinham alguns professores. Também quem quer dar aulas nessas condições. Vocês ganham menos que dois salários mínimos.

— E até agora, passados quase dois meses de greve, o governo do es­tado sequer ofereceu uma contraproposta justa, nem se propõe a recuperar a escola pública.

Acho que a greve é justa, mas e nossas aulas? Nós vamos perder o ano e isso para nós é muito ruim.

— O problema é que não existia normalidade antes da greve. Nós es­tamos denunciando isso também. Não queremos a greve. Afinal somos pro­fessores e gostaríamos agora de ter condições para estar desenvolvendo nosso trabalho na sala de aula. Mas a situação chegou a um ponto insuportável. É pela situação presente de vocês, alunos, e pelo seu futuro como professo­res que estamos todos nessa luta em defesa da escola e da educação que o governo nos nega.

— Vão em frente. Não nos decepcionem. Queremos aulas, sim, para nossos filhos, mas não podemos aguentar uma greve por ano. Agora vocês não podem voltar atrás. Levem a greve até conseguirem condições para me­lhorar a escola que pagamos com nossos impostos.

IX

A correspondência sob a porta. Lanches incompreensíveis. Corrigir ca­dernos. Suas ideias parecem interessantes, mas falta coesão ao texto. Gos­tei, você melhorou, o texto está fluente e claro. Aprofunde a reflexão sobre o assunto. Cuidado com os clichês. Mais depressa mulher: seis horas de so­no, no mínimo.

Deitar o corpo docente. Acordar emoções discentes. Fechar os olhos. Abrir cem portas. Te desejo. Nos encontramos. De frente, de trás, por baixo, por cima. Me amparas. Te beijo. O sapo é o príncipe. Recomeçamos. O sol, o mar, a lua, as estrelas. Cartão-postal. Férias em Honolulu. Gaivotas. Te amparo. Redoma. Foulcault e o desejo de vigiar e punir. A escola públi­ca. O saber particular. A revolução e a conservação. Diretas já, o povo qué votá. O rasgo e os buracos negros. Os sonhos e os salários. Ser ou não ser faxineira: cadê a questão? A privada entupida. Porcos e sapos. Os banheiros públicos encardidos e distantes. Baratas e ratos. A impossibilidade de alívio. O molho de chaves girando. Optar: o público ou o privado? O 3º. mundo, a 8ª. economia, o 2º. sexo, a 1ª. opção. A última concessão. Eu sou quatrocentos alunos. Amor é ódio. Sonhos são detritos da merenda contaminada. Apertar a descarga: a privada engole a pública. A vassoura de pelo e os pelos púbicos. Cômodos nus. Tapetes incômodos. Sobreviver. Resistir? Recome­çar. Por onde? Por quê? Alimentar sonho custa sangue. Quem quer? Qual é a diferença? Eu sou a mesma? A uma é a outra. A uma na outra. A uma e/ou a outra? Nem uma, nem outra. Tanto uma quanto outras.

X

Já é tarde: a faxina não pode mais ser adiada. A irritação aumenta. No tapete, duas manchas irreversíveis me alertam para os perigos do fumo. Nas paredes, os furos de outros quadros insistem em me recordar rastros de ou­tras histórias de aluguel, também verdadeiras, por que não? A pintura da porta descascada no giro do molho de chaves, os cupins roendo o rodapé, os res­tos de cera acumulados no vão dos tacos. E o fantasma do rasgo do tecido da poltrona, cerzido aqui, escapando ali. Quando finalmente poderei reformá-la? Como será a casa que financiarei com saliva, suor e sonho? Quem a con­servará limpa e nova?

O disco acaba. Levanto-me e vou fazê-lo tocar novamente. O cigarro acaba. Acendo outro. A emoção é um vício. Privado.

(M.R.— junho de 1989)

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Essa e outras crônicas pedagógicas foram originalmente publicadas em minha tese de doutorado (FE/Unicamp - 1991 - orientador: João Wanderley Geraldi), publicada em livro, pela Editora da Unicamp, em 1993, com 2a. edição em 1997. Em 2019, foi publicada a 3a. edição revista e ampliada:
MAGNANI, Maria Rosario Mortatti. EM SOBRESSALTOS: FORMAÇÃO DE PROFESSORA. 3. ed. revista e ampliada. São Paulo: Cultura Acadêmica; Marília: Oficina Universitária, 2019. Disponível para download gratuito em:
https://ebooks.marilia.unesp.br/index.php/lab_editorial/catalog/book/156

A 3a. edição conta com prefácios de Maria Teresa Santos Cunha, Maria da Conceição Passeggi, João Wanderley Geraldi (desde a 1a. edição) e posfácios de J. W. Geraldi e Maria do Rosario Longo Mortatti.