Durante agradável conversa com um amigo, lembrei-me de uma crônica que escrevi em 1990, quando era professora na educação básica. Nela apresento uma reflexão bem-humorada sobre a “maldição” de ser professora de língua e literatura...
Não sei se essa crônica serviu ou serve para corrigir costumes - acacianos, sobretudo - daqueles que, tendo ou pretextando dificuldades com a língua e a literatura, temem, discriminam e dispensam a professora dessas matérias... Nem sei se, em tempos de pandemia covidiana e de desgoverno no País, o bom humor (de que não desisto) pode parecer descabido, como adverte Brecht: “Aquele que ri/apenas não recebeu ainda/ a terrível notícia.” (do poema “Aos que vão nascer”).
Com certeza, porém, a conversa com o amigo querido foi um momento de “redenção”, sem temores de supressão de “erres” e “esses”, nem de equívocos quanto ao sexo/gênero de Eça. Um encontro de celebração da vida, que compartilho com a esperança de boas noticias, sempre!
A professora de Português tinha conseguido finalmente terminar de corrigir os textos dos alunos e saiu para se divertir numa casa noturna recém-inaugurada e badaladíssima.
Produzida como estava, foi logo abordada por um simpático rapaz. Depois do lero de praxe — tipo oi, gata, como tá, música legal né, você vem sempre pr'essas bandas, qual teu nome, o que você curte fazer no fim de semana, qual teu signo —, veio a pergunta fatal:
— A gata trampa? Em quê?
— Sou professora.
— Ah, é? De quê?
— Bem, de português e literatura.
Incomodado e aprumando-se na cadeira, o rapaz começou a desarquivar todos os "esses" e "erres":
— Puxa! Deixa eu tomar mais cuidados, então. Sempre tive dificuldades nessas matérias. Até hoje não sei Português direito. Aquelas análises, como se chama mesmo?
— ... sintática?
— Isso. Achar os coletivos e conjugar verbos, sempre me saí mal. Língua difícil essa nossa, né? Mas eu gosto muito de literatura. Já li o livro daquela escritora, a Eça... de quê, mesmo?
— ... de Queiroz?
— Ah! É essa Eça, mesmo. Nossa! Você deve ser muito culta, ensinar português e literatura... Bom, eu já vou indo. A gente se vê outra hora...
(M. R. — 1990)”
Maria Mortatti - 15.05.2020
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Essa e outras crônicas estão publicadas no livro Em sobressaltos: formação de professora. 3ª. ed. revista e ampliada. Marília: Oficina Universitária; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2019. E-book gratuito disponível em : http://ebooks.marilia.unesp.br/index.php/lab_editorial/catalog/book/156
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*Expressão em latim, criada pelo poeta francês Jean de Santeuil (1630-1697)