Acordei com uma ideia incrível naquele domingo: é para Lácio [1] que vou na caminhada do último dia do ano. Planejo há tempos. É logo ali: 6,7 km me dizem o mapa e os daqui. Atrasei-me no computador. Era já meio-dia quando saí. Mas não desisti. Olhos concentrados. Passos cadenciados. Caetaneando na ponta de língua: “a poesia está para a prosa/assim como o amor está para a amizade”[2]. De repente, uma nuvem. Chuva de verão. Lembrei da janela aberta. Voltei correndo. Boca seca. Livros molhados. No próximo domingo – se não chover – vou conferir se ainda está lá a “última flor” e se é mesmo “inculta e bela”[3]. Hoje, sem poesia. Nem filosofia. Não falo alemão. Apenas sigo o conselho: “se você tem uma ideia incrível/é melhor fazer uma canção”.
II
Embora não fosse domingo, no primeiro dia do novo ano decidi completar aquela viagem a Lácio. Atrasei-me – de novo – no computador. Mas não desisti. Saí ao meio-dia. E prevenida. Fechei as janelas, comi batata-doce cozida, peguei a sombrinha vermelha e a garrafa com água. Dessa vez, nem Caetano, nem Bilac. Reli os conselhos de Kaváfis. O tempo todo Lácio na mente. Predestinada a ali chegar. Mas não terá me iludido, se o achar pobre [4]. Em frente. Caminhando decidida. Com pensamento altivo. Apreciando a monotonia da paisagem quase rural, fendida pela rua asfaltada. Vez ou outra um automóvel ou um condomínio residencial. Quase 7 km percorridos, e nada de Lácio. Nem uma vivalma a quem eu pudesse perguntar.
Cheguei ao final da rua. À frente e ao lado, os trilhos da antiga estrada de ferro e a rodovia. Mais adiante, um extenso muro de condomínio. Mas nada de Lácio. Não o achei pobre. Simplesmente não o achei. Ele mesmo, a ilusão? Voltei conformada. Com Italo Calvino na mente. Elevando Lácio à condição de “distrito invisível”. E ouvindo as explicações de Marco Polo a Kublai Khan: “aquilo que ele procurava estava diante de si, e, mesmo que se tratasse do passado, era um passado que mudava à medida que ele prosseguia sua viagem”[5].
Mais de uma hora de caminhada deu-me Lácio. Dessa vez, não fui surpreendida pela chuva, nem incomodada por fome e sede. Mas também não fiz nenhuma canção. Este texto ficou pesado. Talvez pelo que eu tenha aprendido no caminho. Talvez porque agora eu saiba o que significam Lácios. Assim foi.
Maria Mortatti – 27.12.2020/01.01.2021
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[1] Lácio é distrito de Marília, município do oeste paulista. Não confundir esta com a amada de Dirceu; nem aquele, com a região da Itália.[2] Da canção "Língua", de Caetano Veloso.
[3] Do poema "Língua portuguesa", de Olavo Bilac.
[4] Paráfrase de versos do poema “Ítaca”, de Konstantinos Kaváfis.
[5] Do livro As cidades invisíveis, de Italo Calvino.