Para leitores de hoje talvez possa parecer
estranho que um homem que ficou conhecido na história do Brasil como “herói da
República” tenha se dedicado também à propaganda do método João de Deus para o
ensino inicial da leitura e escrita, que passamos a designar por
“alfabetização”.
Assim foi com Antonio da Silva Jardim
(1860-1891). Esse positivista militante, que, em especial nos dois anos antecedentes
à proclamação da República, tornou-se ardoroso propagandista do novo regime
político e da abolição da escravatura no País, foi também professor que
defendia a modernização da instrução e a renovação dos métodos de ensino. Em
1882, com 22 anos de idade, estivera em “missão” na província do Espírito
Santo, para divulgar o método João de Deus, contido na Cartilha maternal ou
arte da leitura (1876), do poeta
português, João de Deus. Em oposição aos métodos alfabéticos, fônico e silábico
para o ensino da leitura utilizados no século XIX, Silva Jardim considerava
esse método baseado o mais moderno, científico e revolucionário, porque baseado
na palavração e de acordo com os princípios do positivismo comtiano bem como dos
preceitos da Linguística mais avançada da época.
Em abril de 1884, tendo sido aprovado em
concurso para a Cadeira “Gramática e língua nacional” da Escola Normal de São
Paulo, proferiu a conferência Reforma do ensino da língua materna, em
que defende o método da palavração. O resumo dessa conferência, publicado em
opúsculo como modelo para ensino da leitura, é o documento-chave escolhido por
Franciele Ruiz Pasquim para análise de sua configuração textual, com os
objetivos de compreender o pensamento sobre ensino da leitura defendido por
esse professor e a relação com as demais facetas de sua atuação, contribuindo,
assim, para a produção de uma história do ensino de leitura e escrita no Brasil.
A pesquisa desenvolvida pela autora resultou em
dissertação de mestrado que tive o prazer de orientar no Programa de
Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp –
campus de Marília e que está vinculada ao Grupo de Pesquisa “História da
Educação e do Ensino de Língua e literatura no Brasil” (GPHELLB),
que coordeno desde sua criação, em 1994. E está também vinculada ao programa de
pesquisa cuja matriz teórica se encontra no livro Os sentidos da
alfabetização: São Paulo - 1876/1994, como as pesquisas anteriores sobre
história da alfabetização que também orientei: de 2007 a 2010, em nível de
graduação/iniciação científica; de 2011 a 2013, no mestrado; de 2014 a 2017, no
doutorado.
Por meio da leitura deste livro, pode-se, por
um lado, compreender a importância dessa faceta - quase desconhecida até à publicação
dos resultados daquela pesquisa matricial - de Silva Jardim para a história do
ensino de leitura e escrita no Brasil, iluminando e realçando a relação entre
alfabetização e projetos de nação, que, a exemplo das evidências no atual
contexto político e educacional do País, alguns querem esconder quando
consideram a questão dos métodos como meramente técnica. Por outro lado - e não
menos importante, pode-se também apreender o rigoroso e apaixonado processo de
pesquisa cujos resultados a autora nos dá a conhecer, como parte de sua
história de formação acadêmica e intelectual que tive e tenho o prazer de
acompanhar, mesmo depois de encerradas as atividades formais de orientação.
Este livro, cuja leitura recomendo a pesquisadores, professores, estudantes e todos os que se interessam pela educação, vem preencher uma lacuna nos estudos sobre Silva Jardim e sobre história da alfabetização no Brasil. Publicado 130 anos depois do falecimento daquele professor e no ano do centenário de nascimento de Paulo Freire, o que Franciele Ruiz Pasquim nos apresenta sobre o passado instiga também a renovar reflexões e buscar ações concretas baseadas na advertência freireana, em Educação como prática da liberdade: o analfabetismo “é uma das expressões concretas de uma realidade injusta. Não é um problema estritamente linguístico nem exclusivamente pedagógico, metodológico, mas político, como a alfabetização por meio da qual se pretende superá-lo. Proclamar a sua neutralidade, ingênua ou astutamente, não afeta em nada a sua politicidade intrínseca.”
Ribeirão Preto, 24 de outubro de 2021
Maria do Rosario Longo Mortatti