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O MENINO TIPOGRÁFICO E O POEMA SEM-FIM / MARIA MORTATTI

 Prefácio ao livro 
Menino tipográfico e outras históriasde João Scortecci. 
(Scortecci Editora, 2022, 260 p.)


1.

Em Menino tipográfico e outras histórias, encontram-se 116 crônicas selecionadas entre as mais de seis centenas que João Scortecci escreveu nos últimos 16 anos e publicou em mídias sociais.

O livro vem compor o conjunto da obra – até o momento – do cearense João Ricardo Scortecci de Paula, radicado há meio século na capital paulista, onde, em 1972, estreou como poeta em revista universitária. Desde então, vem desdobrando e ampliando suas atividades profissionais, consolidando exitosa trajetória como poeta, escritor, editor, gráfico, livreiro, presidente do Grupo Editorial Scortecci e da Associação Brasileira da Indústria Gráfica – Regional São Paulo, partícipe na formulação de políticas públicas para a cultura e em funções diretivas de associações relacionadas com o “ecossistema” criativo e produtivo do livro e seu entorno.

Menino tipográfico... é seu primeiro livro de crônicas e vem a público em tempos de comemorações de marcos de sua trajetória, destacando-se: 50 anos de estreia na literatura, 40 anos de fundação da Scortecci Editora e 36 anos de criação da Gráfica Scortecci. E também este livro já é mais um marco a ser comemorado – até o momento.

2.

Provavelmente não por acaso, os textos do livro são do gênero crônica, que condensa traços da linguagem jornalística, da prosa de ficção e da poesia. Embora busque representar miudezas do “rés-do-chão”, a crônica pode alcançar durabilidade no tempo, pois, sendo:

[...] filha do jornal e da era da máquina, onde tudo acaba tão depressa [...] não foi feita originariamente para o livro, mas para essa publicação efêmera [...] Por se abrigar neste veículo transitório, o seu intuito não é o dos escritores que pensam em “ficar”, [...] e a sua perspectiva não é a dos que escrevem do alto da montanha, mas do simples rés-do-chão. Por isso mesmo consegue quase sem querer transformar a literatura em algo íntimo com relação à vida de cada um, e, quando passa do jornal ao livro, nós verificamos meio espantados que a sua durabilidade pode ser maior do que ela própria pensava. (Candido, 1981, p. 6) 

Passando das mídias sociais – veículo transitório em que, neste caso, originariamente circularam – para o livro impresso, as crônicas reunidas por João Scortecci apresentam as principais características do gênero destacadas por Candido (1981): variedade de assuntos referentes a contextos específicos de produção e circulação, em textos breves, com forma de composição só aparentemente solta, linguagem poética e quase sempre irônica e bem-humorada, entremeada de “relato caprichoso dos fatos”, “desenho de certos tipos humanos”, diálogos rápidos e certeiros, interpenetração de oralidade e escrita, convidando os leitores a se identificarem e interagirem com o cronista, imaginando novas histórias em cada passagem da que está sendo narrada.

Essas características têm seu valor literário ressaltado neste livro, por meio da singularidade estilística do Autor: textos breves de leitura ágil, organizados em um só parágrafo, com marcação rítmica precisa, linguagem leve, simples e elegante; diálogos pontuais e ágeis em tom coloquial, com eficaz uso da pontuação, evitando intervenções do narrador e trazendo os personagens para o centro da cena; relatos minuciosos, mas com concisão semântica e sintática, evitando lógica argumentativa, explicações artificiosas e comentários desviantes; tom direto, franco, sugestivo, divertido e crítico, sem, no entanto, perder o lirismo da prosa poética e o sagaz encantamento do contador de causos.

Embora possam ser lidas separadamente ou de forma salteada, quando consideradas na sequência característica do livro impresso em que são agora publicadas, as crônicas assumem nova configuração textual, mobilizando outros sentidos e possibilidades de interpretação e desfrute da leitura.

“Menino tipográfico” e “Poesia é a amálgama do verbo” sintetizam as metáforas centrais que conferem unidade temática às 116 crônicas, caracterizando-as como capítulos ou cenas de uma narrativa poético-cinematográfica de formação da identidade psicológica, moral, cultural, social, literária e profissional do Autor, que se foi constituindo a partir de vivências, experiências e fatos decisivos da infância, adolescência e adultez, na inter-relação com diferentes sujeitos e contextos históricos, geográficos, sociais e culturais.

Como me tornei o que estou sendo? Essa é a pergunta que parece conduzir a escritura e a leitura das crônicas-capítulos, importando talvez menos as respostas do que a multiplicidade de inquietações sugeridas e mobilizadas pelo narrador, em si e nos leitores. No movimento contínuo de idas e vindas do pessoal/individual/íntimo ao coletivo/social/público – internamente a cada crônica e entre elas – em flashback e flash forward, com alternância da sequência narrativa entre diferentes planos temporais e espaciais, vão sendo apresentadas lembranças antigas e recentes de vivências com familiares, amigos, escritores, artistas e profissionais diversos bem como suas leituras sobre autores e obras, além de assuntos relacionados ao “ecossistema” do livro.

Como um colecionador de memórias, preservadas em textos, objetos e imagens – incluindo filmes Super 8 legados pelo pai –, o narrador compartilha o arquivo de sua vida – até o momento – “[...] que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia”, assimilando “[...] à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer” (Benjamin, 1987, p. 221), ou pelas leituras e experiências vividas. Além de uma espécie de genealogia de si, apresenta, portanto, testemunho de diferentes épocas, lugares, fatos e pessoas com quem vem interagindo ao longo de sua vida e atuação profissional.

Assim, em torno das metáforas centrais, vai tecendo a rede de significados que as histórias narradas constituem entre si, articulando umas às outras e amalgamando-as engenhosamente com a prosa poética, mesmo quando predominam conteúdos informativos.

3.

O título do livro – em que está citado o da crônica de abertura – evoca o célebre verso do poeta inglês William Wordsworth: “The Child is father of the Man/O menino é pai do homem”. Ao mesmo tempo em que remete a uma narrativa de formação, funciona como convite-chave para acompanhar o narrador no seu desafio de decifrar o enigma do bode guardião – “esfomeado por cultura impressa” e de “gosto apurado, letrado” – e, satisfazendo seu apetite, conquistar

[...] passagem livre porta adentro da tipografia de A Verdade [que o] elevou – glorificado – ao incrível e mágico templo das histórias impressas, que habitam, até hoje, o coração de tipos móveis deste menino tipográfico e suas tantas outras histórias. (Scortecci, 2022, p. 23) 

Seguindo por esse portal, os leitores vão adentrando em espaços labirínticos da memória do narrador, como se ele tivesse encontrado e devolvesse a nós outra chave, a da porta do castelo que

[o] irmão José Henrique – distraído que só ele – colocou [...] no bolso da calça e não a devolveu. A chave “[...] que abre o segredo, de muitas histórias, do memorial da Família Paula.” (Scortecci, 2022, p. 249) 

As crônicas tratam, de forma direta ou indireta, de assuntos relacionados a escritores, editores, artistas, gráficos, livreiros, manifestações culturais, história do livro, da literatura, da cultura, processos técnicos/tecnológicos e produtos editoriais e gráficos, entidades associativas do livro, da literatura e da indústria gráfica.

Por meio da leitura da sequência de títulos no sumário, já se pode encontrar instigante preâmbulo à história composta pelo conjunto das tantas histórias que habitam o coração do menino tipográfico.

Reminiscências e vivências na cidade e no estado natal, Fortaleza/Ceará, carregadas de lirismo[1] – como as das interações afetivas com o pai, Luiz, e a mãe, Nilce, aos quais o livro é dedicado; do Comendador Ananias, o “anjo do menino tipográfico”; das danações da infância; da iniciação sexual; do escotismo; do pescador Osmar; do cego Aderaldo; da Joana “tilógrafa”; do Zé do Isqueiro; do sineiro do colégio; do peru adestrado; da festa de Réveillon com o casal francês, do menino que plantou sementes de uva e tantas mais –, vão se entremeando com as do narrador em sua cidade de adoção, a capital paulista, caracterizando a visão cosmopolita sobre as escolhas profissionais que fez e vem fazendo como partícipe e protagonista de sua “vida de livros”.

Em relação às reminiscências e vivências na Pauliceia, destacam-se histórias referentes a: encontros com escritores, como Menotti Del Picchia, Rachel de Queiroz, Cora Coralina, Lygia Fagundes Telles, Marcos Rey, Ricardo Ramos, Fernando Sabino, Maurício de Sousa, e com profissionais da indústria gráfica, como Leon Feffer; leituras sobre escritores e filósofos, de diversas épocas e países, como Hipatia, Dante Alighieri, Boccaccio, Torquato Tasso, Luiz de Camões, Stéphane Mallarmé, Walt Whitman, James Joyce, Virginia Woolf, Sei Shônagon, Pablo Neruda, Machado de Assis, Clarice Lispector, Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade; editoras e revistas, como Careta, PAN, Lunário Perpétuo, Seleções; casas editoriais e gráficas, como Livraria e Editora Garnier, Casa Garraux, Casa Pratt, Editora Einaudi; entidades associativas, como a União Brasileira de Escritores; história de livros e bibliotecas antigas e contemporâneas, como o Talmude, os livros encadernados com pele humana, a destruição de livros, a Biblioteca de Alexandria, a Biblioteca do Mosteiro de São Bento; e as histórias da Scortecci Editora, desde a fundação e eventos marcantes, e de seus autores, como Eny Cezarino e Arquimedes, entre tantas e tantas outras.

Certamente também não por acaso, o livro se encerra com o emblemático texto “Poesia do princípio e do fim”, de teor metapoético, lírico e filosófico, no qual o Autor formula uma concepção de poesia, reflete sobre seu poder e o faz por meio da linguagem poética:

Poesia é o princípio. O começo do ‘nada’ de algo. Nela, tudo é flor de palavras, do meio – corpo e espírito – e do fim, imortal e lúdico, pela vida. Poesia é a amálgama do verbo. (Scortecci, 2022, p. 257)

 

4.

A chave inicial de sentido é a entrada do menino – após vencer o desafio do bode bibliófago – na tipografia onde se imprimia o jornal com o sugestivo título A Verdade. O texto de abertura leva a crer que o menino tipográfico é o pai do homem de múltiplas atividades relativas ao mundo do livro. Embora possível e coerente, essa interpretação contempla apenas parcialmente a rede de sentidos que se podem atribuir ao conjunto das crônicas.

Importantes aspectos que mobilizam outros sentidos e possibilidades de interpretação estão relacionados tanto com a formação e atuação do Autor quanto com a origem histórica e o hibridismo do gênero crônica, também poético e ficcional. É o que se observa no último texto do livro. Aparentemente funcionando como encerramento, trata-se de outra chave “devolvida” aos leitores como um incerto desfecho, que não indica a cessação do fim, mas seu contrário. Des-fechando, reabre, devolvendo-nos ao início: a poesia amalgama começo, meio e fim, verdade e ficção, no verbo que se faz crônica.

Tipografia é arte e processo de criação na composição e impressão de um texto, e seu objetivo principal é dar estrutura e forma à escrita, possibilitando sua reprodução, publicação e divulgação. O menino tipográfico descobriu os processos, os meios e os modos de imprimir textos. O menino que talvez ainda não se soubesse poeta ali vislumbrou também o espaço para criar conteúdos e se exprimir por meio da escrita. Amalgamados no processo formativo e profissional do Autor, assim como na configuração textual da crônica, o menino tipográfico/menino poeta é o pai do homem poeta, escritor, cronista, editor, gráfico, livreiro, partícipe e protagonista de atividades relacionadas com o “ecossistema” criativo e produtivo do livro e seu entorno.

Movendo-se com agilidade e leveza no labiríntico templo do tempo-espaço de suas reminiscências e experiências, exprimindo-as em prosa poética, imprimindo-as no papel e na memória dos leitores, o Autor oferece, por meio da leitura deste livro, mais uma e talvez a principal chave: a do coração de tipos móveis do homem, filho do menino tipográfico/menino poeta, que vai compondo o mosaico das contribuições de seu legado para a “Galáxia de Gutenberg”.

Sem dúvida, Menino tipográfico e outras histórias representa mais um marco a ser comemorado na exitosa trajetória de realizações de João Scortecci e no conjunto de sua obra – até o momento. Como ele mesmo adverte, há ainda tantas outras histórias para serem contadas por e sobre o homem que continua se perguntando “como me tornei o que estou sendo?” e fazendo de sua “vida de livros um poema sem-fim”.


Referências

BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. Obras escolhidas, v. I.

CANDIDO, Antonio. A vida ao rés-do-chão. In: ANDRADE, Carlos Drummond et al. Para gostar de ler. São Paulo: Ática, 1984. v. 5. Prefácio.

MCLUHAN, Marshall. A Galáxia de Gutenberg. A formação do homem tipográfico. Trad. Leônidas Gontijo de Carvalho e Anísio Teixeira. São Paulo: Companhia Editora Nacional; Editora da Universidade de São Paulo, 1972.

SCORTECCI, João. Menino tipográfico e outras histórias. São Paulo: Scortecci Editora, 2022.

WORDSWORTH, William. My Heart Leaps Up/Eu sinto o coração bater mais forte. In: Poesia selecionada. Trad. Paulo Vizioli. São Paulo: Edições Mandacaru, 1988 (Edição bilíngue)

Maria Mortatti - 03.12.2022



[1] Em relação às reminiscências da infância cearense do Autor, este livro de crônicas pode ser considerado como uma espécie de continuidade temática de seu livro de poemas Na linha do cerol: reminiscências poéticas. (2ª ed. revista e ampliada. Scortecci Editora, 2003), que analiso no ensaio “Um livro-arraia”, disponível em: https://www.mariamortatti.com.br/search?q=livro-arraia