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CAMA DE POETA (HOMMAGE À TROIS) / MARIA MORTATTI

Este texto começou a ser escrito no dia 19 de abril de 2022, para homenagear os 136 anos de Bandeira. Com ele passei aquela noite de libertinagem. Fomos para Pasárgada, lá onde somos amigos do rei. Ele teve as mulheres que quis. E eu, o homem que quero na cama que escolhemos. A nossa tinha lençóis brancos, um livro na mesinha de cabeceira sob o quebra-luz e o amor – ah, o amor! – inteirinho dentro de nós, com lirismo descomedido, todo libertação. Nela adormeci e sonhei com a estrela da vida inteira brilhando na penumbra do quarto. Acordei com o soluço do sapo transido de frio na beira do rio noticiando a tragédia brasileira. Ele se foi sem dizer adeus. E me lembrei de que a eternidade está longe.  O texto – inconcluso – guardei-o com o porquinho-da-índia debaixo do fogão.  

O vento foi varrendo as luzes, os sonhos, os meses. Quando vi, já era dia 30 de julho. Mas ainda em tempo de não deixar o tempo passar. Retomei o texto para homenagear Quintana em seu aniversário de 116 anos. Estávamos lá, na cama, no seu pequeno quarto com menos lugares para perder as coisas. Demos corda ao relógio do mundo e acabei adormecendo dentro dele. Sono tão bom, que, quando o passarinho me acordou, o domingo era um cachorro escondido debaixo da cama e eu não encontrava a moedinha perdida. Os mais lindos versos de amor silenciaram. Ele se foi sem me dizer adeus? Por quê? Por quê? Por quê? Depois lembrei: “O amor é quando a gente mora um no outro”. O coração se acalmou, momentaneamente. O texto – ainda inconcluso –, guardei-o como um romance que ficasse aberto, talvez temendo a morte e desejando que fosse como um céu que pouco a pouco anoitecesse/e a gente nem soubesse que era o fim... 

Quando outubro chegava ao fim, despertou-me um anjo torto com um cartaz amarelo: neste país não é proibido sonhar. Levantei-me apressada. Era dia de homenagear Drummond: 120 anos! Tropecei na pedra no meio do caminho. Encontrei as palavras em estado de dicionário, ainda úmidas e impregnadas de sono. De mãos dadas, seguimos o dia. Não fugimos para as ilhas. Sobre o tapete ou duro piso, compusemos com urgência a úmida trama. Um caso pluvioso! Para repousar, fomos à cama. Onde cabe todo o sentimento do mundo e o amor – ah, o amor! –, esse privilégio dos maduros, que começa tarde e se aprende depois de arquivar toda a ciência. A lua e o conhaque nos botaram comovidos como o diabo. Sonhei que cantávamos o medo, respirando papel na noite do quarto. Acordei sozinha no escuro. Por que me abandonaste? E agora, José? Sem rima, a solução: chegara o tempo em que a vida é uma ordem. É preciso terminar o texto. Mesmo sabendo que tenho apenas duas mãos e ainda que mal me exprima. Se procurar bem, acabo encontrando, não a explicação (duvidosa) da partida inesperada – Por quê? Por quê? Por quê? –, mas a poesia (inexplicável) dos tempos felizes. Mesmo sabendo que amar um passarinho é coisa louca e o canto é sua essência, só quem ama escuta o apelo da eternidade. E, se não há falta na ausência, se de tudo fica um pouco, por que não ficaria muito de nós em nós?  

A estrela da vida inteira, os quintanares, o anjo torto e todos os poetas que amo se infiltram nas páginas do livro da minha vida e vão compondo em sete mil cantos as sete mil faces do meu único e eterno amante. Com ele copulo. Nele me perco. Tal uma lâmina, atravessamo-nos, fecundamo-nos e renascemos em cada novo cio. Na sublime intimidade. Nossa cama de poeta. 

Maria Mortatti – 31.10.2022 

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Notas

Cito, sem aspas e com licença poética, versos de poemas de Manuel Bandeira (19.04.1886 – 13.10.1968), Mário Quintana (30.07.1906 – 05.05.1994) e Carlos Drummond de Andrade (31.10.1902 – 17.08.1987). 

Na foto que ilustra o texto estão Bandeira, Quintana e Drummond, com o Morro da Providência (RJ) ao fundo, no fim da década de 1960. A foto original  sem os efeitos visuais que apliquei –  está em: https://revistamododeusar.blogspot.com/2015/07/bandeira-quintana-e-drummond-diante-do.html?view=flipcard