O vento foi varrendo as luzes,
os sonhos, os meses. Quando vi, já era dia 30 de julho. Mas ainda em tempo de
não deixar o tempo passar. Retomei o texto para homenagear Quintana em seu aniversário de 116 anos. Estávamos lá, na cama, no seu pequeno quarto com menos lugares
para perder as coisas. Demos corda ao relógio do mundo e acabei adormecendo
dentro dele. Sono tão bom, que, quando o passarinho me acordou, o domingo era
um cachorro escondido debaixo da cama e eu não encontrava a moedinha perdida.
Os mais lindos versos de amor silenciaram. Ele se foi sem me dizer adeus? Por
quê? Por quê? Por quê? Depois lembrei: “O amor é quando a gente mora um no
outro”. O coração se acalmou, momentaneamente. O texto – ainda inconcluso –,
guardei-o como um romance que ficasse aberto, talvez temendo a morte e
desejando que fosse como um céu que pouco a pouco anoitecesse/e a gente nem
soubesse que era o fim...
Quando outubro
chegava ao fim, despertou-me um anjo torto com um cartaz amarelo: neste
país não é proibido sonhar. Levantei-me apressada. Era dia de
homenagear Drummond: 120 anos! Tropecei na pedra no meio do caminho.
Encontrei as palavras em estado de dicionário, ainda úmidas e impregnadas de
sono. De mãos dadas, seguimos o dia. Não fugimos para as ilhas. Sobre
o tapete ou duro piso, compusemos com urgência a úmida trama. Um caso pluvioso! Para repousar, fomos à cama. Onde cabe todo o sentimento do mundo e o
amor – ah, o amor! –, esse privilégio
dos maduros, que começa tarde e se aprende depois de arquivar toda a ciência. A
lua e o conhaque nos botaram comovidos como o diabo. Sonhei que cantávamos o
medo, respirando papel na noite do quarto. Acordei sozinha no escuro. Por que
me abandonaste? E agora, José? Sem rima, a solução: chegara o tempo
em que a vida é uma ordem. É preciso terminar o texto. Mesmo sabendo que tenho apenas duas mãos e ainda que mal me
exprima. Se procurar bem, acabo encontrando, não a explicação (duvidosa) da
partida inesperada – Por quê? Por quê? Por quê? –, mas a poesia (inexplicável) dos tempos felizes.
Mesmo sabendo que amar um passarinho é coisa louca e o canto é sua essência, só
quem ama escuta o apelo da eternidade. E, se não há falta na ausência, se de
tudo fica um pouco, por que não ficaria muito de nós em nós?
A estrela da
vida inteira, os quintanares, o anjo torto e todos os poetas que amo se
infiltram nas páginas do livro da minha vida e vão compondo em sete mil cantos
as sete mil faces do meu único e eterno amante. Com ele copulo. Nele me
perco. Tal uma lâmina, atravessamo-nos, fecundamo-nos e renascemos em cada novo
cio. Na sublime intimidade. Nossa cama de poeta.
Maria Mortatti – 31.10.2022
___________________________
Notas
Cito, sem aspas e com licença poética, versos de poemas de Manuel Bandeira (19.04.1886 – 13.10.1968), Mário Quintana (30.07.1906 – 05.05.1994) e Carlos Drummond de Andrade (31.10.1902 – 17.08.1987).
Na foto que ilustra o texto estão Bandeira, Quintana e Drummond, com o Morro da Providência (RJ) ao fundo, no fim da década de 1960. A foto original – sem os efeitos visuais que apliquei – está em: https://revistamododeusar.blogspot.com/2015/07/bandeira-quintana-e-drummond-diante-do.html?view=flipcard