Na sala do velório, adornado de flores coloridas, seu corpo inchado repousava no caixão forrado de tule branco. Pálida. Olhos fechados, emoldurados por rugas fundas, vincados pela última dor. Lábios caídos. Mãos cruzadas sobre o abdômen estufado e liso. E as marcas do amor das filhas: cabelos recém-tingidos de preto. Unhas cuidadosamente esmaltadas de vermelho. Batom delicadamente colorido. Brincos nas orelhas. Pingente dourado enfeitando o colo. As pulseiras vistosas. E — disseram — com a blusa recém-comprada e seus sapatos prediletos nos pés.
Sobre o caixão, a imagem de Jesus Cristo preso à cruz. Ao lado, algumas cadeiras. Circundando a sala, sofás e cavaletes com coroas de flores. Homenagem dos que diziam tê-la amado. Pessoas entravam e saíam. Choravam, inconformadas. Cada uma expressava seu espanto com a morta repentina e realçava o inconformismo com a perda da talentosa artesã de bonecas de pano, mulher guerreira, tão boa, tão alegre, tão dedicada ao trabalho, à família.
As três filhas — Daniela, Juliana e Mariana — choravam desesperadas, vagando pelo portal do cemitério. Eram confortadas pelos que foram se despedir. Como eu, que viajei por duas horas urgentes e observava espantada a expressão — mal disfarçada — de dor e o sofrimento da irmã-morta.
_ Do que ela morreu, afinal? O que aconteceu?
Não sabiam ao certo. Seu horóscopo daquele dia não dera nenhum sinal. Diziam apenas que ela as esperara para o almoço. Quando a última das três filhas chegou, sucumbiu, amparada por seis braços em pânico. Chamaram os socorristas. Tentaram reanimá-la com massagem cardíaca. Chegaram a fraturar algumas costelas. Em vão! A polícia foi chamada: protocolo de "morte natural em residência". Fizeram boletim de ocorrência. O corpo passou por autópsia no Instituto Médico Legal. Foi liberado 12 horas depois. Na declaração de óbito, quatro causas. A mais contundente: “rotura cardíaca aguda”.
O que lhe coube na vida? Um coração tão intensamente preenchido, que se partiu. O que ficou dela? Sua obra, para mim simbolizada pela bonequinha japonesa da festa de 15 anos de minha filha; e a lembrança — sempre presente — da menina com suas bonecas que se tornou a mulher com um alegre e eterno sorriso nos lábios. Que a maquiagem fúnebre — sinceramente — não conseguiu reproduzir. Nem este Requiem à irmã-que-morreu-de-amor-de-mãe.
MARIA MORTATTI - 23.01.2022 (texto escrito em 13.05.2015)
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Nas imagens abaixo: Maria de Lourdes Longo Mortatti - Dida (Araraquara, 23.01.1957 - S. J. do Rio Preto, 13.05.2015), no Rio de Janeiro, em 1959; e uma das bonecas confeccionadas por ela para decoração da festa com temática japonesa, em comemoração aos 15 anos de minha filha, Julia, em 2009.
Fonte das imagens: Acervo pessoal de Maria Mortatti