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MEUS CANTOS, AINDA: O TERCEIRO INCLUÍDO / MARIA MORTATTI

Na véspera do antepenúltimo dia de 2023, enquanto esperava minha vez na fila de uma “esmalteria express” – daquelas que oferecem serviços de manicure sem agendamento de horário –, pensava no tempo que perdia com uma de minhas pequenas vaidades. Tinha textos para terminar antes de viajar para as festas de final de ano. Mas não podia deixar de lado o cuidado com as unhas. Resolvi o conflito digitando, ali mesmo, na telinha do celular, uma postagem para o Facebook sobre meus cantos: a sala 50 na faculdade e o escritório no apartamento. Por sorte ou azar, chegou logo a minha vez. Mas não desisti. Uma das mãos com a linda jovem manicure; com um dedo da outra, digitando, até ela terminar o serviço. Não ficou lá essas coisas, mas saí com as unhas beijadas de vermelho e o mais importante: o texto pronto e ilustrado com fotos da galeria de meu celular. Contrariamente às leis clássicas do pensamento – que aprendi nas aulas de Filosofia no curso colegial –, duas partes de mim, nem mutualmente exclusivas, nem mutualmente exaustivas, entrelaçaram-se no terceiro dialeticamente incluído. 

Durante a viagem, com uma mão no volante do carro, outra na memória, folheei o livro que li no mestrado em meados dos anos 1980: Lógica formal, lógica dialética, de Henri Lefebvre, publicado no França em 1946/47 e traduzido no Brasil por Carlos Nelson Coutinho (Civilização Brasileira). Admitida a contradição lógica, lembrei-me do que não coube no tempo do serviço da manicure: meu canto na casa de Arthur, em Ribeirão Preto, o terceiro incluído, há três anos, na lógica dialética-afetiva de avó poeta. Para lá, levei a primeira escrivaninha da minha juventude araraquarense, comprada com “salário” de professora particular. Redescobri-a guardada por meu irmão, e passou a ser referência de nosso escritório, quando encontro com Arthur nesse território rodeado histórias, memórias, travessuras, gostosuras e livros que comprei ou trouxe para ele de minha biblioteca. Sobre a escrivaninha, o notebook, onde escrevi parte de meus textos nos últimos anos, entre eles: “O primeiro livro de Arthur” (Scortecci, 2022), com um capítulo dedicado à história da escrivaninha, e este texto, dedicado ao lindo menino que dorme na madrugada silenciosa.

Nesses três cantos – a sala 50 na Unesp – Marília, o escritório em meu apartamento em Marília e o escritório na casa de Arthur em Ribeirão Preto – estão reunidos os registros de meus quase 70 anos de vida e de leitora, mais de meio século de poeta, escritora, professora, pesquisadora e os primeiros três anos de avó, tecedeira de lembranças beijadas em vermelho. Entre ganhos e perdas, conquistas e fracassos, ordem e caos, encontros e desencontros, neles está: "o que fiz com o tempo que sobre a terra me foi dado" (Brecht), até agora. Meu melhor legado. Minha obra, minha vida.

Maria Mortatti – 04.01.2023