Pesquisar neste Blog

ITALO CALVINO: MUNDO ESCRITO E MUNDO NÃO ESCRITO [1] / MARIA MORTATTI

(...)

Em conferência de 1983 (tradução brasileira em 2015[2]), o escritor cubano-italiano Ítalo Calvino (15.10.1923 – 19.09.1985) contrapõe o mundo escrito ao mundo não escrito: “[...] aquele que costumamos chamar o mundo, feito de três dimensões, cinco sentidos, povoado por bilhões de nossos semelhantes [...]” (p. 105). A passagem daquele para este mundo representa, para esse escritor, “ingresso numa vida diferente”, assemelhando-se ao “trauma de um novo nascimento” e obrigando-o a “[...] escolher uma estratégia para enfrentar o inesperado sem ser destruído.” (p. 105)  

Todo rito de passagem corresponde a uma mudança de atitude mental; quando leio, cada frase deve ser prontamente compreendida, pelo menos em seu significado literal, e deve tornar-me capaz de formular um juízo: o que li é verdadeiro ou falso, correto ou incorreto, agradável ou desagradável. Na vida ordinária, ao contrário, há sempre inumeráveis circunstâncias que escapam ao meu entendimento, das mais gerais às mais banais: frequentemente me vejo diante de situações sobre as quais eu não saberia pronunciar-me, sobre as quais prefiro suspender o juízo. Enquanto espero que o mundo não escrito se esclareça a meus olhos, há sempre uma página escrita ao alcance da mão, na qual posso tornar a mergulhar; e é o que logo faço, com a maior satisfação, ainda que só consiga entender uma pequena parte do conjunto, posso cultivar a ilusão de estar mantendo tudo sob controle. (p. 106)

Se um e outro mundo aparentam ser inconciliáveis, conforme duas correntes filosóficas contrastantes sobre a linguagem — ou completamente autônoma ou completamente transparente em relação ao mundo —, esse escritor propõe “tirar vantagem da situação”, considerando avanços de entendimento, que permitem evitar confusões entre o que é ou não linguagem e compreender as relações entre esses dois mundos: 

[...] se sentimos tão intensamente a incompatibilidade entre o escrito e o não escrito, é porque somos muito mais conscientes sobre o que é o mundo escrito: não podemos esquecer nem por um instante que se trata de um mundo feito de palavras usadas segundo as técnicas e as estratégias próprias da linguagem, segundo os peculiares sistemas em que se organizam os significados e as relações entre significados. (p. 108)

O mundo não escrito, por sua vez, “[...] está sempre ali e não depende das palavras, ao contrário, ele é de certo modo irredutível às palavras, e não há linguagem, não há escrita que possa exauri-lo [...]” (p. 107).  Mesmo os que supõem que ler jornais, assistir à televisão ou andar pelas ruas da cidade possa significar “contato com o mundo de fora” ou escape “das garras do mundo escrito”, esses não conseguem acessar a “coisa em si”. Do “discurso construído” pela mídia, pode-se extrair uma “[...] leitura do mundo feita por outros, ou melhor, feita por uma máquina anônima, especializada em escolher do pó infinito dos eventos aqueles que podem ser peneirados como ‘notícia’”; e o que se vê nas ruas “[...] já tem seu lugar no contexto da informação homogeneizada.” (p. 109). 

Este mundo que vejo, aquele que é costumeiramente reconhecido como o mundo, se apresenta aos meus olhos – pelo menos em grande parte – já conquistado, colonizado pelas palavras, um mundo que carrega sobre si uma pesada crosta de discursos. Os fatos de nossa vida já estão classificados, julgados, comentados antes mesmo que aconteçam. Vivemos em um mundo onde tudo já está lido antes mesmo de começar a existir. Não somente tudo o que vemos, mas também nossos olhos estão saturados de linguagem escrita. (p. 109)

Por isso, o escritor considera que estamos programados para a leitura do mundo em que vivemos, mas não como “mero exercício ótico”, que obriga nossos olhos (ocidentais) a movimentos físicos horizontais da esquerda para a direita, pois:

[...] ler é um processo que mobiliza olhos e mente ao mesmo tempo, um processo de abstração, ou melhor, uma extração de concretude por operações abstratas, como reconhecer traços distintivos, fragmentar tudo o que vemos em elementos mínimos, recompô-los em segmentos significativos, descobrir à nossa volta regularidades, diferenças, recorrências, singularidades, substituições, redundâncias. (p. 111)

Assim, a “pesada crosta de discursos” que o mundo não escrito carrega sobre si e que satura de linguagem escrita nosso olhar impõe o hábito de leitura, por meio do qual se configurou a transformação, ao longo dos séculos, do homo sapiens em homo legens . (p. 109) E, embora esse estágio da “evolução” da espécie humana seja marcado também pela perda de capacidades (como visão, audição, paladar, tato) do “homem que não sabia ler”, o escritor destaca que não propõe 

[...] um retorno ao analfabetismo para recuperar o saber das tribos paleolíticas. Lamento tudo o que possamos ter perdido, mas nunca me esqueço de que os ganhos superam as perdas. O que estou tentando entender é o que podemos fazer hoje. ( p. 109)

Refletindo, então, sobre o que cabe ao escritor no processo de renovação da relação entre linguagem e mundo, reconhece a complexidade do mundo atual, que não pode mais ser escrito na “linguagem da matemática e da geometria, uma linguagem de absoluta exatidão”, como a linguagem do “livro do mundo”, conforme Galileu. 

Nosso mundo cotidiano [...] mais nos parece escrito como um mosaico de linguagens, um muro cheio de grafites, carregado de escritas traçadas umas sobre as outras, um palimpsesto cujo pergaminho foi raspado e reescrito varias vezes, uma colagem de Schwitters, uma estratificação de alfabetos, de citações heterogêneas, de jargões, de caracteres pulsantes como aparecem na tela de um computador. (p. 111)

E, apesar das limitações da experiência dentro da página escrita e de sua ignorância e desorientação no mundo não escrito, o escritor reconhece que dele não pode prescindir para seu ofício: “[é] para repor em movimento minha fábrica de palavras que preciso extrair novo combustível dos poços do não escrito.” (p. 107) E, ainda, que não talvez não caiba ao escritor alcançar a “[...] uma mimese desta linguagem do mundo”, fundindo ambas as linguagens e conciliando a oposição entre os dois mundos, pois o “[...] verdadeiro desafio para um escritor é falar do intrincado enrosco de nossa situação usando uma linguagem que pareça tão transparente a ponto de criar um sentido de alucinação, como Kafka conseguiu fazer.” (p. 107)

Com base nessas reflexões, trata também das características de seu ofício:

[...] a maior parte dos livros que escrevi, e dos que tenho em mente escrever, nascem da idéia de que escrever um livro assim me parecia impossível. Quando me convenço de que certo tipo de livro está completamente além das possibilidades de meu temperamento e de minhas capacidades técnicas, me sento à escrivaninha e começo a escrevê-lo. 

[...] 

Não sei se vou conseguir, mas [...] meu objetivo não é simplesmente fazer um livro, mas mudar a mim mesmo – objetivo que, acho, deveria ser o de toda aventura humana. (p. 113-114)

(...)

____________________

[1] Trecho do ensaio "Leitura na escola: para formar o homo legens" (2015). In: Entre a literatura e o ensino: a formação do leitor [online]. São Paulo: Editora Unesp, 2018, pp. 171-189. O ensaio completo está disponível para download gratuito em: https://doi.org/10.7476/9788595462854.0012.

[2] In: CALVINO, I.. Mundo escrito e mundo não escrito. Artigos, conferências e entrevistas. Organização de M. Barenghi. Tradução de M. S. Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.