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TOLSTÓI, ROSINA, ARTHUR E O MANACÁ / MARIA MORTATTI

(Crônica de O primeiro livro de Arthur, de Maria Mortatti, Scortecci Editora, 2022)

Ao menos hoje, nesta noite de sexta-feira quente de inverno, ao menos hoje, escrever ou morrer. Sem tró-ló-ló. Mesmo que em atraso. Antes tarde do que mais tarde. Foi o que me disse o primeiro namorado. Já não me lembro por que motivo. Dele, foi só isso que ficou.

Deixando de lado os consabidos episódios bélicos do último dia da independência do Brasil, passemos às comemorações. Em 9 de setembro, nasceram muitas pessoas. Entre elas: o escritor russo, Leon Tolstói (1828-1910), e minha mãe, Rosina Longo Mortatti (09.09.1924 – 06.05.2008). Em outro dia 9 – de janeiro de 2021 – nasceu Arthur, seu bisneto, meu neto.

O escritor – um dos maiores de todos os tempos – obviamente não o conheci, mas com ele convivi, na intimidade do universo ficcional que me legou, como em Guerra e Paz, Ana Karenina, Sonata a Kreutzer. A mãe, estranhamente, conheço pouco, embora com ela tenha convivido, menos ou mais próxima, durante mais de cinco décadas. Hoje me pergunto com Virginia Wolf: “O que estavam fazendo nossas mães que não tiveram nenhuma riqueza para nos legar?”

Numa noite quente de verão, há mais de 20 anos, não era inverno e talvez nem sexta-feira. A bebê dormia. Uma barata voadora entrou pela janela noturna. Esta mãe zelosa colocou a filha assustada no carrinho. Estacionei-o ao lado da estante de livros. Parecia o lugar mais seguro. Muni-me de artefatos para abater a intrusa. Batalha desproporcional. Terminou com a vitória do ser desprezível voando deliberadamente de volta para a escuridão. Enquanto lutava com vassouras, gritos e xingamentos, a bebê – notei depois - se divertia com os dois volumes de Guerra e Paz, que conseguiu alcançar e derrubar da última prateleira da estante.

Não sei o que Tolstói e Rosina faziam naquele momento. Ela, talvez engasgada com sapos,  em noite de guerra. Ele, talvez descansando em paz com seu imortal legado. E Arthur, como entra nessa história? Neste momento, dormindo no quarto ao lado. Protegido no peito da mãe, entretida com os presentes que lhe dei: os dois volumes daquele romance russo e as fotos de sua avó Rosina segurando-a no colo, enquanto regava o jardim. 

Por incrível que pareça, tudo é paz. Pela janela, entra apenas um discreto perfume do pé de manacá que floresce na casa ao lado, nesta noite de sexta-feira quente de inverno. E, quando Arthur acordar no meio da noite, vou niná-lo com a cantiga de Schumann. Talvez antes eu lhe conte esta história e o sonho com o anúncio do menino-neto, exatamente um ano atrás.

Maria Mortatti – 09.09.2021