Vi-me diante de algumas alternativas.
Uma primeira alternativa seria tentar uma fala acadêmica, em que fizesse considerações sobre a história da história da alfabetização no Brasil: como a história da alfabetização vem se desenvolvendo nas últimas décadas, o progresso e sucesso dessa linha de pesquisa, que se concretizam na importância deste encontro, na rica trajetória dos grupos que aqui estão e que têm feito avançar tanto a história da alfabetização no Brasil – em pesquisas, em publicações, em constituição de acervos, em organização de museus da escola... seria cômodo falar de vocês e de seus feitos, e transferir a homenagem para vocês... mas essa trajetória tão bem sucedida da história da alfabetização no Brasil ficará muito mais clara nas mesas redondas que vão acontecer nos próximos dias, nas comunicações e trabalhos que vão ser apresentados.
Uma segunda alternativa seria tentar uma reflexão sobre a minha história com a história da alfabetização no Brasil, reflexão que fiz eu mesma, procurando entender esta homenagem. Nesse caso, eu teria oportunidade de compartilhar com vocês a rememoração que fiz, buscando identificar minha contribuição para a construção da história da alfabetização: na verdade, essa contribuição não foi mais que a de ter-me dado conta, em determinado momento, lá nos já distantes anos 1980, que não era suficiente estarmos a discutir os problemas que tínhamos com a alfabetização sem olhar para o passado, sem buscar a história que nos tinha feito chegar aonde estávamos e... onde infelizmente estamos ainda.
Minha contribuição foi apenas a de, naquele momento, desenvolver a pesquisa sobre o estado do conhecimento em alfabetização; depois disso, tenho-me apoiado em vocês para entender mais e melhor a história, já que não consigo desprender-me da realidade presente, e me tenho dedicado a enfrentar os problemas que temos hoje na alfabetização, na perseguição de um futuro melhor para nossas crianças: conformo-me com a característica que um dia Clarice Lispector identificou nela mesma e reconheço em mim, a de “mulher incumbida”...
Mas a alternativa que realmente se revelou como sendo o meu desejo maior foi me dar o direito de partilhar com vocês o efeito emocional que o convite causou em mim, as reflexões subjetivas que ele desencadeou em mim; talvez porque esta homenagem vem exatamente no momento em que eu chego aos meus 78 anos, e se acentua a reflexão sobre o que foi e o que é...
O convite, a homenagem, os 78 anos acordaram em mim, de forma curiosa, um poema de Manuel Bandeira, meu poeta preferido entre os preferidos, poema que ao longo da vida eu sempre li e reli, nunca o entendendo inteiramente. Peço licença para colocar um pouco de literatura nesta conversa, contar minha relação com o poeta, com o poema, e como esta homenagem me fez finalmente entender o poema e palavras que sobre ele me disse um dia o poeta.
Leio o poema.
"Canção do vento e da minha vida/O vento varria as folhas,/o vento varria os frutos,/ o vento varria as flores.../E a minha vida ficava/cada vez mais cheia de frutos, de flores, de folhas.//O vento varria as luzes,/o vento varria as músicas,/o vento varria os aromas.../E a minha vida ficava/cada vez mais cheia/de aromas, de estrelas, de cânticos.//O vento varria os sonhos/e varria as amizades.../O vento varria as mulheres.../E a minha vida ficava/cada vez mais cheia/de afetos e de mulheres.//O vento varria os meses/e varria os teus sorrisos.../O vento varria tudo!/E a minha vida ficava/cada vez mais cheia/de tudo."
Minha primeira monografia na área da literatura, que fiz ainda estudante do curso de Letras, no início dos longínquos anos 1950, foi sobre a poesia de Bandeira. E já então me intrigava esse poema: como explicar o paradoxo de que o vento/tempo varria tantas coisas, metaforizadas em folhas, frutos e flores, em luzes, músicas e aromas, em sonho e amizades... e, ao mesmo tempo, a vida ficava cada vez mais cheia? e quando o vento/tempo varria tudo, a vida ficava cheia de tudo?
Tive uma conversa com Bandeira sobre isso – eu jovem, ainda cursando Letras, nos meus 20 anos, ele então já se aproximando dos 70. Eu tinha enviado a ele – coisas de estudante... – aquela monografia sobre a poesia dele, tínhamos nos conhecido pessoalmente, ele até tinha feito um poema sobre mim ... [3]
Perguntei a ele o que significava a vida ficar cada vez mais cheia de tudo, quando o vento/tempo varria tudo – ele só sorriu, como sabem sorrir os idosos para os jovens inexperientes, e disse, nunca me esqueci: “um dia você vai saber..”.
O poema, como todos os de Bandeira, foi-me acompanhando pela vida afora... livros de cabeceira... Muitas vezes na minha vida me perguntei se já sabia..., às vezes pensei que sabia..., me perguntava se a vida ficar cada vez mais cheia de tudo, quando tudo tinha sido varrido, era bom ou era mau...; em momentos em que sentia minha vida muito cheia de tudo, achava que era mau...
Quando recebi o convite de Maria do Rosário para participar, na condição de “convidada de honra”, deste encontro, e dar nome ao prêmio que será concedido ao melhor trabalho, fiquei, confesso, profundamente surpreendida e mesmo atordoada. Curiosamente e inesperadamente o poema veio à minha cabeça, e, como em uma epifania, eu finalmente soube o que o poeta me disse que “um dia eu ia saber”, senti que o dia tinha chegado; fui logo em busca do poema, reli, e entendi, agora entendo: o poema fala da descontinuidade, da impermanência – e é o que acontece na nossa vida: o vento/tempo vai varrendo tanta coisa, quando se vai envelhecendo, quando nos retiramos para os bastidores, entregamos o bastão aos jovens... . Mas o poema fala, paradoxalmente, da continuidade, da permanência daquilo que não é fugaz, que continua tornando cada vez mais cheia a nossa vida; e pensei: os pesquisadores que formamos, os alunos que tivemos, os leitores que nos leem, os amigos que fizemos, os afetos...
Então entendi que o vento/tempo varreu um “tudo” de que às vezes sinto falta, não vou negar: os grupos de pesquisa, as aulas, as orientações, os eventos acadêmicos, até as reuniões... falta que às vezes traz um sentimento de vida “varrida”... . Mas o convite para estar aqui, nesta condição, me fez reconhecer a vida cheia, me fez entender que a vida foi ficando, na verdade, cada vez mais cheia: cheia pela continuidade das pesquisas em que nos envolvemos no passado, pelos ex-orientandos que continuam na vida acadêmica e agora são os que orientam, cheia sobretudo dos afetos que continuam presentes... sinto aqui, agora, a vida cada vez mais cheia de tudo.
Assim, o pudor, o constrangimento iniciais diante desta homenagem se transformaram em gratidão por esta boa sensação que agora tenho: o vento/tempo pode ter varrido muita coisa, mas a minha vida vai ficando cada vez mais cheia de tudo. Muito obrigada por esta homenagem e o significado que ela tem para mim."
Magda Soares – 07.09.2010
_____________
[1] Este texto foi lido por Magda Soares, por ocasião de seu agradecimento pela homenagem que recebeu no I SIHELE – Seminário Internacional sobre História do Ensino e Leitura e Escrita, promovido pelo GPHEELLB – Grupo de Pesquisa História da Educação e do Ensino de Língua e Literatura no Brasil e realizado na Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista, campus de Marília, de 7 a 9 d e setembro de 2010. Está publicado no livro Alfabetização no Brasil: uma história de sua história. Editora Unesp; Oficina Universitária, 2011. Vencedor do 54º. Prêmio Jabuti – Educação – Câmara Brasileira do Livro – 2012.
[2] Magda Becker Soares (07.09.1932 – 1º. 01.2023) foi professora titular emérita da Faculdade de Educação da UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais, era graduada em Letras, doutora e livre-docente em Educação. É autora de diversos livros teóricos sobre alfabetização e letramento, que se tornaram clássicos, e também de livros didáticos de língua portuguesa. Em 1990, Ano Internacional da Alfabetização (Unesco), criou o Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) da Faculdade de Educação da UFMG, do qual foi diretora até 1995 e onde continua atuando como colaboradora. Em 2012, foi eleita Presidente de Honra da ABAlf – Associação Brasileira de Alfabetização. Por suas importantes contribuições para a educação brasileira, recebeu muitos prêmios e títulos. Foi a primeira educadora a receber o Prêmio Almirante Álvaro Alberto para a Ciência e Tecnologia (CNPq/MCTI) – 2015, a mais importante honraria nacional em ciência e tecnologia. Em 2017, recebeu o Prêmio Jabuti – Educação e Pedagogia, pelo livro “Alfabetização – A questão dos Métodos”.
[3] Trata-se de “Poema de duas Magdas”, que se encontra publicado em: BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Aguilar, 1967. p. 451. (Nota da Organizadora)