Pesquisar neste Blog

A POESIA ME SALVA / MARIA MORTATTI

“A poesia me salva” é meu mantra, originado de vivências de infância, aos poucos sintetizado nessa fórmula ritual, repetida mentalmente ou em solilóquio, até hoje, a cada momento de perigo, desafio e impasse existenciais. Meses atrás, num domingo de muito sol e relativa serenidade, fui instada a pensar sobre o assunto, quando um amigo me perguntou por que repito sempre essa frase em conversas informais e publicações.

Vasculhando na memória, em caminho tortuoso às profundezas de quase sete décadas de vida, localizei uma lembrança que talvez tenha sido a primeira a dar contorno àquelas antigas vivências. É a imagem vivíssima de uma cena da cinebiografia da bailarina e coreógrafa norte-americana Isadora Duncan (26.05.1887 – 14.09.1927), uma mulher fascinante, que se celebrizou no início do século XX, buscando constantemente a máxima liberdade na dança e na vida. Expressava com o corpo a energia da alma. Defendia e vivia o amor livre e rompeu com as regras rígidas do balé clássico – dançava descalça e usando apenas uma túnica transparente –, inaugurando a dança moderna. 

No filme Isadora (UK/Fr., de1968, dirigido por Karel Reisz), baseado nos livros Minha vida (1927) e A arte da dança (1928) escritos pela bailarina, ela é interpretada pela atriz norte-americana Vanessa Redgrave (1937 – ), que recebeu o Prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cannes de 1969. Assisti ao filme na época de seu lançamento, no Cine Odeon, na Rua 3 (São Bento) em minha cidade natal, Araraquara, interior paulista. Para a adolescente de 15 anos, a história de Isadora e a interpretação de Redgrave foram tão impactantes, que, penso hoje, contribuíram para o delineamento de um momento decisivo de minha formação. Não me lembro se estava acompanhada de alguma amiga ou namorado, mas me lembro nitidamente de que, naquela noite glamorosa de sábado, três imagens me acompanharam e ficaram gravadas – para sempre – na memória do corpo e da alma: Isadora, nua, admirando-se em frente ao espelho de corpo inteiro e fazendo o juramento de dedicar sua vida à busca da perfeição da beleza; e os trágicos acidentes de carro, o que resultou na morte por afogamento de seus dois filhos e a babá, em 1913, depois que o carro em que viajavam caiu de uma ponte sobre o Rio Sena, e o que resultou em sua morte, aos 50 anos de idade, em Nice, na França, durante um passeio em um conversível em alta velocidade, quando sua écharpe enroscou em uma das rodas e a sufocou.

Desde a infância, além de curso de piano, eu frequentava aulas de balé clássico e, como quase todas as meninas, não só da minha geração, tinha o sonho meio secreto de ser bailarina. Depois do impacto do filme que eternizava para mim a figura dessa mulher revolucionária – se foi ou não exatamente por causa dele, não sei –, desisti do bale clássico e me dediquei à dança moderna. Quando comecei a estudar literatura no curso de Letras – já leitora antiga da biblioteca pública e escrevinhadora de versos e diário –, compreendi que não daria para ser bailarina, teria de trabalhar como professora, profissão para a qual me formei em 1975. Acho que foi então que “decidi” buscar e cultuar, com a poesia, a perfeição da beleza. Em 1977, um ano antes de partir da cidade natal, depois de minha última apresentação em espetáculo de dança, escrevi o poema "Liberdade".

Nessa declaração de princípios de vida, estava já contida a ideia de salvação pela poesia. Com o tempo, outras vivências e leituras contribuíram para a confirmação de meu mantra. Entre elas, a de Fiódor Dostoiévski: “A beleza salvará o mundo”; e as de Adélia Prado: “A poesia, a mais ínfima, é serva da esperança”; “A poesia me salvará”.

Não me tornei bailarina, nem revolucionei o mundo e os padrões femininos, nem mesmo os das mulheres da família. Foi e é uma luta diuturna para me manter viva e realizar sonhos. Todos sintetizados numa vocação: escrever dançando na ponta da pena a poesia. Nos momentos mais difíceis e desafiadores de minha vida, a poesia me salvou e continua me salvando, como leitora e como poeta. As “provas” estão registradas nos livros que li e me acompanham, em meus diários íntimos, nos livros que escrevo e, sobretudo e sobre todos, nos poemas inéditos (desde a juventude) ou publicados.

Até hoje, a cada momento de perigo, desafio e impasse existencial, retorno, nua, à frente daquele espelho de corpo inteiro de Isadora e renovo o juramento: “A poesia me salva”. De quê? Do medo da finitude? Não sei. Apenas me ponho a escrever, escrever, escrever. Apenas sei que ser poeta é meu melhor modo de sentir, ver, agir e ser no meu tempo no mundo. E amar.

Maria Mortatti – 05.03.1968