Da mente e das mãos do autor para as mãos do editor e do gráfico é um longo processo até o produto final: o livro impresso. Mas a história de um livro somente se completa com a participação de divulgadores, distribuidores, livreiros e mediadores de leitura para que o livro chegue às mãos, mentes e corações dos leitores. Todo livro só existe se é escrito e publicado... para ser lido. O tempo pode apagar uma ideia, um sonho, um desejo. Mas o que está no livro permanece e renasce todas as vezes em que um leitor o acolhe, abre e lê.
A história de O primeiro livro de Arthur – que também contém histórias – está parcialmente contada na carta para Arthur, que precede/apresenta o livro, e é sugerida nas histórias narradas. Outra parte, porém, não contei lá, seja por se tratar de texto ficcional, em que as imagens correspondem à de uma criança real, embora fatos, impressões e sentimentos são os que registrei no diário, da forma como me lembro deles, e possivelmente foram inventados ou só existiram para autora; seja para não impor a Arthur e outros leitores interpretação única e desnecessária. As memórias do vivido são dele também e certamente são diferentes das minhas. O tempo nos dirá.
O livro começou com uma ideia durante uma viagem para encontrá-lo. Naquela tarde quente e ensolarada, conversando com um amigo por mensagens de voz, contei a ele: um dia escreveria um livro para meu neto. O tempo passou, a ideia ficou guardada na memória e, de repente, reapareceu como um imperativo. Foi em outra viagem para encontrá-lo, em outra tarde ensolarada e quente, quando eu estava próxima da chegada ao destino. Uma fila de carros em um estreitamento da pista dupla, muitos carros tentando se acomodar em fila única, todos muito cuidadosos, menos um, o que estava à minha frente. Freou bruscamente. Mesmo se eu fizesse como ele, meu carro não escaparia da batida frontal nem da traseira. O meu era o primeiro de dezenas, que, ao frearem bruscamente, com certeza provocariam um engavetamento.
Em segundos ou milésimos de segundos, naquele imensurável e imperceptível período de tempo a que chamamos “triz”, pensei e avaliei as alternativas: frear e correr o risco de morrer, ou me desviar para a pista da direita, sem nem conseguir saber se me envolveria em outro acidente. Foi, então, que senti ou ouvi, já não importa, uma voz: “Vai, Maria, é agora! Vai que dá!” Segui a voz do anjo, sem titubear. Nem olhei para o retrovisor. Desviei o volante para a direita, passando por um triz pelo para-choque do carro em frente. Entrei na meia pista ao lado, já meio aliviada por não ter me chocado com outro carro. E segui lentamente, enquanto ouvia os estrondos de batidas sequenciais atrás de mim. Certamente era o engavetamento de que escapei. Segui em frente até encontrar um espacinho para retornar à fila única. Pude, então, respirar com calma e compreender o mais importante: eu estava viva! Se tivesse morrido no acidente, quantos sonhos, desejos e projetos adiados teriam deixado de existir! E Arthur não saberia nem da minha ideia, muito menos do livro que, naquele momento, decidi escrever. Ele teria crescido, e o momento da criação seria passado. O tempo é agora, pensei e senti. Posso morrer a qualquer momento, e Arthur vai crescer. Inexorável lei da vida.
Quando comecei a escrever, percebi que o livro era mais do que uma ideia. Ele já existia talvez como sonho ou memória de um futuro em sua pré-história, ou seja, antes mesmo de ser escrito. Desde muito antes até de eu ser mãe e avó, ou, mais recentemente, com o diário e crônicas que eu escrevia para e com Arthur. Mas não vou tão longe. Fico aqui com o presente daquela narrativa e, por meio dela, algumas evocações de seu passado.
A história do livro se inicia como narro no primeiro capítulo: com um sonho de primavera, depois de uma conversa com amigo editor sobre o livro de Wander Piroli, O menino e o pinto do menino. Acho que era também uma ou várias profecias. Tentando interpretar o sonho, naquele momento me pareceu que anunciava a história da menina e a perereca da menina e que estava por escrevê-la. Talvez sim, talvez não. Mas cada vez que releio o livro mais me parece que ele mesmo é a história da menina e a perereca da menina...
O título inicial era O livro de Arthur. Depois alterei para o que ficou definitivo. O motivo mais direto não era, como se imagina à primeira vista, iniciar uma série, embora também possa ser assim. A ideia de “primeiro livro” evoca um ritual escolar de muitas gerações de estudantes (inclusive a minha) até aproximadamente os anos 1960/1970. No 1º. ano do curso primário, a programação era aprender a ler e escrever com cartilhas de alfabetização e, por volta de setembro, tendo vencido as lições da cartilha, considerava-se que os alunos tinham aprendido a ler e já podiam receber o primeiro livro de leitura. Era dia de festa na escola. Um ritual de passagem simbolizando a entrada no mundo da leitura e escrita.
Não faz sentido, claro, imaginar que primeiramente se aprende, para somente depois estar autorizado a ler e escrever. Enquanto se aprende, também se lê e escreve. Mas o simbolismo do ritual ficou marcado na minha memória pessoal e na história da cultura escolar. No caso do livro de Arthur, o ritual de passagem é para outro momento, como o de Wendy, personagem do livro Peter Pan e Wendy, de James Barrie, cujo trecho menciono na carta a Arthur. Mrs. Darling, admirando a menina de dois anos de idade colhendo flores no jardim, suspira com a mão sobre o coração: "Ah! Se você ficasse assim para sempre!” Mas sabiam ambas: todas as crianças crescem – menos Peter Pan, claro –, e dois é o começo do fim. Com Arthur também. Novas brincadeiras, novas relações afetivas, novas aprendizagens a cada segundo. Cresceu.
Escrever o livro foi então uma espécie de ritual de passagem e de despedida: o bebê, com quem passei dias felizes começando o aprendizado de avó, cresceu e se tornou um menino que quer... crescer, que quer sempre o que é mais alto do que ele. Mas me pareceu talvez melancólica uma mensagem que indicasse fim. Crescimento é celebração da vida. Desejo que os dias felizes continuem. Então, na conclusão da carta, inverti a constatação das personagens de Barrie, com uma mensagem mais otimista: dois é apenas o fim do começo!
Com o texto finalizado, chegou o momento da produção, diagramação e arte de capa. Foi preciso tempo e muita atenção para eu localizar, selecionar e reunir as imagens que compõem o livro. Depois, veio o tratamento de imagens e a composição gráfica, realizados por Janaína Alves. Foram várias versões até a final. Com as primeiras páginas prontas, a Scortecci Editora solicitou o ISBN e a ficha catalográfica. Enfim, o arquivo com os originais do livro – capa e miolo – foi para a gráfica Scortecci. Com edição e impressão primorosas, em papel fosco, 14 x 21 cm, ficou pronto o presente de segundo aniversário de Arthur.
A festa do primeiro livro de Arthur começou quando recebi os dois primeiros exemplares. Um para mim. Outro para ele. Escrevi a dedicatória, mandei embrulhar para presente com um laço bem bonito e entreguei em suas mãos, depois de viagem numa tarde ensolarada de novembro. Ansioso com a demora em desfazer o laço, pedia-me com insistência: "Tira! Tira! Abre! Abre!" Como se soubesse que essas palavras mágicas são a chave para acessar um tesouro escondido. Quando lhe entreguei o livro, acalmou-se em estado de íntima concentração. Colocou-o sobre a mesa, ajeitou-se na cadeira com a cabeça debruçada sobre o precioso objeto, surpreendeu-se com sua imagem na capa. "Olha aqui! Olha aqui!" Abriu e começou a folhear. Com gritinhos de alegria, nas folhas iniciais identificou a cor azul, e, no sumário, a cor amarela da faixa com os números. Cada página, cada imagem, um deslumbramento. Até chegar à segunda orelha. Olhou para a foto: "Vovó!" E virou-se para mim. "Vovó!". Foi uma festa! A festa do primeiro livro de Arthur. E um acerto importante em detalhes da arte. Amarelo e azul, nessa ordem, são as cores preferidas desse menino. Amarelo é a que ele aprendeu a pronunciar antes das demais. Depois lemos juntos, ele no meu colo e o livro em nossas mãos. E outra e outra vez. Sempre novas lembranças e descobertas para ele e para mim.
O livro continua sua viagem para chegar às mãos, mentes e corações de outros leitores de muitas cidades brasileiras. A sessão de lançamento e autógrafos, num sábado, 03 de dezembro de 2012, no espaço Scortecci, na cidade de São Paulo, foi mais uma festa! O convite virtual confeccionado pela editora, os cards e o release que elaborei proporcionaram ampla divulgação do livro em mídias sociais, e-mails, grupos WhatsApp e boca a boca. Muitos leitores nos prestigiaram com sua presença. Arthur estava lá, ao meu lado, autografando com carimbinhos coloridos: uma coroa e pegadinhas.
Na sessão de lançamento, o livro foi acolhido por leitores mais próximos da capital paulista. Depois começaram as vendas pela Livraria Scortecci e outras lojas virtuais ou diretamente comigo. A estes, uma dedicatória e autógrafos meu e de Arthur. E aos leitores que moram próximos, entrego em mãos. Fiz até um mapa para marcar o itinerário do livro. E recebi comentários e fotos de leitores. Mais momentos de festa.
Os exemplares da primeira impressão se esgotaram na noite do lançamento. Os da segunda, esgotaram-se logo depois. Quando chegaram os exemplares da terceira impressão [*], Arthur se encantou com o novo e "pesado" presente. Ansioso, pediu-me com insistência: "Abre! Abre!". Conferiu os pacotes "pesados", contou-os e admirou como guloseimas. Abriu um deles e de novo folheou, reconhecendo-se em cada página. Comigo ele autografou os que já estavam reservados por leitores, envelopamos e fomos ao correio para mais viagens do livro.
Não é um livro infantil. É um livro para gente grande ou pequena. Talvez essa afirmação possa ser mais bem compreendida com a leitura do livro ou com a epígrafe extraída de versos de Hölderlin: “As crianças como as árvores/querem sempre o que é mais alto do que elas” ou com aquela citação do livro de Barrie. Ou na profecia escondida naquele sonho de primavera: como o autor de O menino e o pinto do menino, que não pretendia escrever um livro para crianças, mas foi assim compreendido e incentivado pelo amigo editor, acho que também eu escrevi um livro que é e não é só para crianças.
Minha relação com Arthur não é de "peterpanização". Ao contrário, muitas vezes me vi, sem planejar, oferecendo a ele músicas e livros, por exemplo, que não são originalmente destinados a crianças. Compartilho o de que gosto e que para mim é importante, para que ele ao menos conheça, saiba que existe, podendo, claro, gostar ou não. Ofereço referências entre as tantas outras que ele conhece(rá). As escolhas são suas. Mas ele gosta, por exemplo, de Mozart, Bach, cantigas de ninar e de roda, de Cecília, Clarice e tantos outros cantantes e encantantes que lhe apresento. Não se cansa de ouvir "Pequena Serenata Noturna", de Mozart, e com a régua-batuta reger a orquestra. Não se cansa de se entreter com os livros de Clarice, surpreender-se (como na primeira vez) com as imagens que copiei no seu livro, reconhecer cada uma, mostrar suas descobertas e admirar as páginas amarelas. Recentemente, começou a se interessar por melodias que têm letras e rimas. Depois de "Tiro ao Álvaro" e "Pato pateta", veio "Boi da cara preta" e "Alecrim dourado". Nesta, ele capricha na imitação, em falsete prolongado, do agudo na palavra final do segundo verso: "... foi meu amoooooor..." Um encantamento contagiante.
Escrevi o livro para que Arthur tenha as melhores memórias dos tempos em que convivemos bem pertinho, dia e noite, para que ele saiba que é amado e que para ele ofereço meu melhor legado. Mas escrevi também para todos os leitores, avós ou não, que quiserem conhecer uma história de afetos e aprendizagens mútuas. Desejo que Arthur e muita gente grande ou pequena goste de lê-lo tanto quanto gostei de escrever e que, mais uma vez, possamos confirmar: o vínculo afetivo é decisivo para a formação humana, o fortalecimento da identidade e a conquista de autonomia; a literatura salva também do esquecimento e – quem sabe? – realiza anúncios de anjos e profecias de sonhos de meninos meninas registrados no livro que nos une e permanece no tempo.
Ao terminar de escrever esta história do livro, dei-me conta da possível resposta a uma pergunta que me fiz enquanto a escrevia: o que me motivou a contar tudo isso? Bem, a ideia já vinha de algum tempo, especialmente depois que terminei de escrever o livro e quando leitores me perguntam sobre a fonte da ideia e da inspiração. Ou porque venho ensinando a Arthur como se faz, para que serve e como se lê um livro: desde o papel extraído do córtex da árvore, a escrita, a impressão, a capa, as orelhas, as páginas folheadas com o indicador e o polegar, as ilustrações, as letras. Pensando agora, acho que decidi mesmo escrever esta história porque me lembrei do misterioso episódio do sumiço (temporário) do exemplar de Arthur e do sonho da noite de Réveillon.
Sonhei que dormia profundamente quando fui despertada por uma voz suave e cuidadosa, próxima ao lado direito, atrás de minha cabeça: “O bebê morreu. O bebê está morto.” Ainda no sonho, acordei, olhei para o lado, não vi ninguém. Talvez ele tenha dito também: “Vai, Maria, é agora! Vai que que dá!”. Levantei-me da cama, fui até a escrivaninha, liguei o computador e anotei no diário o sereno anúncio. De novo, segui a voz do anjo, sem titubear. Então me lembrei do episódio do dia anterior. O exemplar de Arthur sumiu! Todas as vezes em que o visito, lemos juntos. Dessa vez também. Mas, no dia seguinte, não encontramos nosso tesouro. Procuramos por toda a casa, na estante, nas caixas de brinquedos, embaixo das camas, nos armários e até na gaveta de nossa escrivaninha. Procura daqui, procura de lá. O livro de Arthur onde está? Impossível ter sumido. Em que caverna se escondeu? Com Aladim ou com o menino poeta? Mais uma travessura? Mais um mistério por desvendar? Outra história que espera para ser contada?
Esta é a história da história de O primeiro livro de Arthur. Salva do esquecimento. Da criação autoral à degustação leitora. Tudo ficção. De verdade. A verdade das palavras impressas. E registro-a na aurora do novo ano – o segundo de Arthur – para oferecer mais um presente ao menino que chegou ao mundo numa tarde ensolarada de 9 de janeiro de 2021 e desejar a ele e a todos os leitores que continuem amando a vida e as pessoas. E nunca se esqueçam da lição de Arthur: para o livro cumprir seu destino de renascer em cada leitura, é preciso querer e dizer as palavras mágicas que dão acesso ao tesouro. "Abre! Abre!"
Maria Mortatti – 02.01.2023 - RP
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[*] O livro teve a 4a. reimpressão, em 16.01.2023, a 5a., em maio de 2023; a 6a., em outubro de 2023, a 7a, em dezembro de 2023.