Rosina Longo Mortatti (09.09.1924 – 06.05.2008): araraquarense, virginiana, palmeirense. Era filha de Orazio Michelangelo Longo e Ângela Maria Abramo Longo, diplomou-se professora primária em 1943 no Curso Normal Livre do Colégio Progresso de Araraquara, casou-se com Vinício Mortatti em 30.12.1951 e tiveram quatro filhos: Renato e três Marias.
Seu pai nunca permitiu que ela exercesse a profissão, enquanto solteira. Depois de casada, para ajudar no sustento da família, lecionou em escolas isoladas da região de Araraquara: na Estação do Ouro, do Chibarro, na Usina Tamoio, na Usina Maringá... Sempre com um lenço cobrindo os cabelos para não pegar piolho... Acompanhei-a uma ou outra vez em viagens de charrete no caminho de terra até às escolas. Depois, para "subir” na carreira, cursou Pedagogia na Faculdade São Bento de Araraquara, deixou a sala de aula e atuou como vice-diretora em escola estadual da periferia da cidade, até se aposentar.
Não era amante da leitura, mas, sempre que possível, comprava, à prestação, livros de vendedores domiciliares, para incentivar os filhos a ler ou talvez para enfeitar a estante, ao lado do aparelho de TV em preto e branco, nos anos 1960, como a coleção de romances e contos de Machado de Assis (Sedegra) e José de Alencar (Liv. Fittipaldi Ed.) e “Joias da literatura infantil" (Maltese). Assinava revistas, como “Família Cristã”, "Seleções do Readers' Digest", “Manchete”, e o jornal “Folha de S. Paulo”.
Enviuvou em 1995, passou a viajar com as amigas professoras em excursões promovidas pelo Centro do Professorado Paulista e se dedicou ao cultivo de seu jardim na casa da Avenida Prudente de Morais, de onde nunca aceitou sair para morar com os filhos. Ali faleceu de decorrências de doença autoimune.
Mãe é mãe. Suas palavras têm peso de profecia autorrealizável. “Você vai aprender a tocar piano e ser professora; é tudo que eu queria fazer, mas seu avô nunca deixou.” Aprendi piano e me tornei professora de Português e literaturas... “Primeiro o dever, depois o lazer”. Cumpri religiosamente meus deveres de filha, esposa(s), mãe, professora, pesquisadora e tantas outras tarefas femininas e masculinas. Cuidei (e cuido) de tudo e de todos. Pragmática e eficientemente. Tornei-me especialista em equacionar e resolver problemas “insolúveis”. Para o lazer, sobrou-me pouco tempo. Para o prazer, por muitas décadas restou a clandestinidade das madrugadas. Até que, sexagenária, finalmente decidi inverter os termos da segunda profecia da mãe. Antes tarde do que muito mais tarde. Ainda é tempo do prazer em primeiro lugar. Em 2019, foi a vez de “Breviário Amoroso de Sóror Beatriz” (Patuá) sair da clausura, com uma seleção de poemas escritos entre 1976 e 1993. Em 2020, iniciei a publicação, pela Scortecci, da trilogia “Essa mulher”: “Mulher Emudecida” – contos (2021), “Mulher umedecida” – poemas (1ª. ed., 2020; 2ª ed. ver. e ampl. 2021), “Mulher Enlouquecida” – poemas (2023), entremeada por “Amor a quatro mãos” – poemas (2022).
Se ela estivesse viva, hoje completaria 98 anos de idade. Talvez comemoraríamos com uma festa ou um bolo para parentes e amigos que sempre a visitavam em seu aniversário. Eu lhe daria um ramalhete de rosas e – como fiz com meus livros científicos e teria feito com os literários, se ela fosse viva quando foram publicados – daria também o livro de poemas que lancei neste ano . E ela provavelmente mostraria às visitas, com orgulho, como fazia com meus outros livros. Nesses dias, ela costumava deixá-los furtivamente expostos sobre alguma mesa, para mostrá-los em momento oportuno. Depois, guardava-os em uma caixa com lembranças, cartas e fotos. Quando ela faleceu, guardei comigo os livros, as fotos e as cartas de amor que ela e meu pai trocaram. Não sei se leu aqueles meus livros de professora universitária. Mas acho que ela gostaria de ler e talvez até se surpreenderia com os livros da filha poeta, que ela não chegou a saber que existia. Como me surpreendi com as cartas de amor de Vinício e Rosina.
E, talvez, eu e ela estaríamos pensando, cada uma com seu silêncio, em respostas à desafiante pergunta de Virginia Woolf, em "Um teto todo seu": “O que estavam fazendo nossas mães que não tiveram nenhuma riqueza para nos legar?” Talvez, ainda, fôssemos surpreendidas por outra inaudível pergunta-profecia: ou elas nos legaram as riquezas que puderam ser, mesmo quando não as sabíamos?
Maria Mortatti – 09.09.2022