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O (NÃO) ENCONTRO COM FIDEL: ABSOLVIDA PELA HISTÓRIA

  

Em 1986, quando eu tinha 31 anos de idade, viajei a Cuba, com colegas professores da educação básica de Campinas/SP e da Universidade São Francisco – campus de Itatiba/SP, para participar do Congresso Pedagogia/86 – Encontro de Educadores para um Mundo Melhor, realizado em Havana, de 27 a 31.01.1986. Os relatos de nossas atividades e os resultados da participação no evento estão sintetizados no livro de que sou coautora: “Quem sabe, ensina: quem não sabe, aprende: a educação em Cuba” (Papirus, 1986). 

Meu registro pessoal está em muitas fotos e nas páginas de um diário de viagem: a partida de Campinas, as peripécias da “escala” compulsória (na ida e na volta) em Lima-Peru, para carimbar o passaporte (até aquele ano, o Brasil não matinha relações diplomáticas com o governo da ilha caribenha...), a chegada a Havana, a hospedagem no majestoso Hotel Nacional, a participação nas atividades oficiais do congresso, as aventuras clandestinas, a visita a Habana Vieja, ao “bar de Garcia Márquez”, à família que nos recebeu, o sabor inigualável do rum ouro e dos charutos cubanos, os muitos episódios pitorescos, inconfessáveis nos registros oficiais da viagem... Um deles foi o susto no primeiro passeio pelo pátio ajardinado do hotel. Um jovem cubano se aproximou e me perguntou com naturalidade: “¿Eres comunista?”. Pega assim de surpresa, respondi com uma matreira piscada d'olhos: “¡No puedo! Soy brasileña...". 

Do outro episódio sempre me lembro nos dias 29 de janeiro. O momento que eu mais aguardava era, sem dúvida, o encontro com Fidel Castro (13.08.1926 - 25.11.2016). No hotel ou nas ruas, quando perguntava sobre o Presidente, a resposta era mais ou menos assim: ninguém sabia nem podia saber onde estava “mi papá”. Fiquei, então, muito entusiasmada quando recebi o convite para a recepção no dia 29 de janeiro de 1986, quarta-feira, às 20h30, no Salão de Protocolo, em Cubanacan, Havana. Iria finalmente conhecê-lo em pessoa. Talvez até conseguisse um aperto de mãos ou um autógrafo ou uma foto, para testemunhar esse momento memorável.

Preparei-me desde cedo, naquele dia. No congresso estive por pouco tempo. Comprei alguns livros e discos de Pablo Milanês e tirei uma foto com o Ministro da Educação. Depois, passeio pelas ruas e pela orla da praia, boas conversas com havaneses, volta ao hotel para escolher a roupa que ia vestir, o perfume, a maquiagem e deixar bem à vista a máquina fotográfica. Dispensei a janta no hotel e esperei ansiosa pelo ônibus que nos levou a Cubanacan.

Em ambiente decorado e iluminado, um conjunto tocava músicas cubanas. Muitos convidados já tinham chegado. Garçons serviam rum e alguns canapés, que nem me lembro de ter experimentado. Preferia a bebida, que nem era tão farta, mas sempre saborosa. Perguntava se Fidel já tinha chegado. Alguns diziam que ele chegaria em breve e faria uma saudação do lado direito do salão. Corríamos para lá, com gritinhos e aplausos antecipados. Mas... nada. Diziam os dali que ele estava do outro lado, se eu não tinha visto e não sabia que ele esperava todos chegarem para começar a saudação. Nova onda de gritinhos, eu espremida entre as pessoas que corriam para lá e... nada.  O salão foi se enchendo de gente ansiosa, o calor, aumentando, eu transpirando e pegando só mais copo de rum da bandeja de um garçom, enquanto corria de um lado para outro, a cada alarme falso sobre a chegada de Fidel.  

Entre idas e vindas, vindas e idas, não me lembro como consegui passar por entre tantas pessoas e chegar ao toalete. Nem me lembro exatamente do que aconteceu. Soube depois que desmaiei, fui atendida por socorristas de plantão, colocada em uma maca e levada, em ambulância, de volta ao hotel.  No dia seguinte, além da ressaca, a zombaria triunfante em cada detalhe que me contavam sobre a — suposta? — aparição pública de Fidel e sua saudação. Alguns disseram que até tiraram fotos com “El comandante”, mas ia demorar para revelarem o filme... Também triunfante, eu revidava: “Deixem estar. ‘A história me absolverá’ [1]. Fidel também.”

Ao menos trouxe livros, discos, fotos, anotações, uma caixa de charutos “Romeo y Julieta” e algumas garrafas de rum ouro — que se acabaram em não muito tempo. Certa vez, um amigo refinadíssimo, que aprecia charutos cubanos e sabe de seu valor, me advertiu que, depois de tanto tempo e sem conservação adequada, já perderam a validade. Mas não os descarto. Vez ou outra me lembro deles, abro a caixa, olho por alguns instantes — acho que até vejo minha foto com Fidel escondida ali — e guardo novamente.  

Daquele episódio ficou a lembrança de certa infidelidade. Mas não sou nostálgica nem saudosista. Se me lembro dele hoje talvez seja apenas para me recordar de outro. Recente e memorável. Trinta e quatro anos depois. Em outro dia 29 de janeiro, quando eu tinha 65 anos de idade, compareci a outro encontro marcado. Como se fosse a primeira vez. Acompanhados de rum ouro, ouvindo Omara Portuondo — “¿Dónde estabas tú?” e “Siempre en mi corazón” — , abrimos delicadamente outra caixa, colocamos um charuto entre os dedos, conferimos a textura sedosa da capa, levamos aos ouvidos para escutar o leve estalar das folhas, desfrutamos o aroma, preparamos cuidadosamente o corte, levamos à boca e, em suaves puxadas, degustamos lentamente cada sabor e cada nota do precioso “Romeu e Julieta”. Tenho fotos e muitas, muitas palavras. E talvez uma serena e fiel certeza: a história me absolveu.


Maria Mortatti – 29.01.2022

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[1] "A história me absolverá" ("La Historia me Absolverá") é o título do célebre discurso de Fidel Castro, de 1954, em que faz sua autodefesa no julgamento por ações relacionadas ao "Movimento Revolucionário 26 de julho".