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SOBRESSALTO DE DOMINGO: NA PRAÇA COM O PAI

Hoje lembrei do pai - Vinício Mortatti (19.07.1929 - 05.06.1995) – e dos almoços dos domingos de infância e juventude araraquarenses. Exceto em raros dias de festa, o cardápio domingueiro era macarrão ao molho de tomates, acompanhado de frango assado ou algum tipo de carne vermelha e acho que uma salada. Tudo muito simples e rápido, talvez para evitar prolongamento de encontros e assuntos constrangedores: "Almoço não é hora para isso”, dizia a mãe.

Certamente, meu pai preferia a agilidade nesses momentos. Eu também. Ele estava sempre ansioso pelo jogo de futebol, que acompanhava com paixão pelo radinho de pilha, mesmo quando havia transmissão pela TV. E eu sempre ansiosa por terminar de lavar a louça, tarefa que me cabia para ter o direito da melhor diversão naquelas tediosas tardes de domingo: ir com meu irmão às matinês no Cine Odeon ou Paratodos.

Hoje lembrei do pai e de sua advertência sobre meu envolvimento com filmes de "bang-bang". Se me soou na época como “sentença de morte” da inocência, com o passar do tempo pude compreender que a acolhi com irônica desobediência e alvissareira resistência. Como revelação de uma sentença de vida: a poesia me salva. E basta por hoje. Preciso preparar meu almoço de domingo. O episódio continua vivo no livro “Em sobressaltos” e nas lembranças deste domingo na praça com o pai.

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“Nas matinês de domingo, mascando chiclé, junto com meu irmão mais velho, eu não perdia um filme de bang-bang. Gritava, chorava e torcia pelo mocinho; tinha raiva do bandido e xingava. Como se eu estivesse dentro da tela. Depois, em casa, minha brincadeira preferida era representar as cenas de persegui­ção aos bandidos e aos índios, para salvar a fazenda do mocinho ou a pátria dos americanos. [...] Minha mãe reclamava dessas estrepolias “de menino”, que eu devia me comportar como uma mocinha. Meu pai também de­ve ter reparado nesses gostos meus. Certa vez, me ouvindo contar exaltada uma sequência de perseguição e morte de um bandido, resolveu me chamar à realidade. Deve ter sido minha primeira reflexão sobre verossimilhança e os efeitos “prejudiciais” da arte. [...]

— Filha, você não pode se deixar levar desse jeito pelos filmes que vê. Você acredita que nem um boba em mentiras. Você acha que os atores morrem de verdade?
— Mas e o sangue, papai? De onde vem?
— É tudo de mentira. E só pra enganar trouxa. É massa de tomate que eles colocam debaixo da camisa e explodem na hora do tiro. Nem as balas do revólver são de verdade. Já imaginou se eles morressem mesmo? Onde iam arranjar tanto ator?
— Claro, papai. Os atores são sempre os mesmos. Não sou boba. Mas também não perguntei se eles morriam de verdade..."

(Das lembranças de M. R. — março de 1991)*

MARIA MORTATTI – 13.06.2021

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*MAGNANI, M R Mortatti. Em sobressaltos: formação de professora. 3. ed. rev. e ampl. Marília: Oficina Universitária; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2019. p. 108.
O livro está disponível em: https://ebooks.marilia.unesp.br/index.php/lab_editorial/catalog/book/156

Fonte da imagem: Acervo pessoal de Maria Mortatti